Os primeiros momentos da disseminação do Covid-19 pelo mundo, a surpresa estava no encontro definitivo com a morte. China foi um espanto de alerta e um SOS a avisar a todos que não haveria distinção entre esquerda e direita, ou entre capitalismo neoliberal e socialismo. O mundo, na sua formação globalizada, na feliz concepção de McLuhan, reduzira-se a uma aldeia global em que todos estariam, numa certa intimidade, interligados. Bastava um só portador do coronavírus, ainda que inconsciente, para que, num mero contato, despretensioso contato, na condição de hospedeiro, o transmitisse para o novo contaminado que o passaria incontinenti para os demais com os quais mantivesse uma insignificante relação informal de um bom dia ou boa noite. A atmosfera de fraternidade seria o suficiente para o contágio.

China e Itália foram as primeiras vítimas desse processo de relação globalizada, ocorrido num mundo em que todos estão de alguma forma interligados, ora num simples contato pessoal, ora quando do recebimento de uma encomenda que transita pelas mãos de sucessivas pessoas que, sem saberem infectadas, exercitam a sua missão de servir, contribuindo para tornar o mundo nesta aldeia em que nós estamos a mourejar.

Antes, logo no começo de tudo, numa cidade dos Estados Unidos, em Nova Jersey, a personagem real Grace Fusco, mãe de 11 filhos e 27 netos, de família ítalo-americana, todos os domingos, nos almoços, se faziam presentes muitos familiares. A alegria marcava esses encontros. Era um clã unido nessa fraternidade. Essa rotina feliz foi quebrada pela fatalidade. Aos 73 anos, após ser contaminada pelo coronavírus, Grace Fusco morreu, isso hora após seu filho ter falecido e antes de cinco dias do falecimento de uma filha. Dias depois, um outro filho de Grace, Vincent Fusco, contraiu o Covid-19 e morreu. E três filhos de Grace, infectados, foram hospitalizados, e dois deles em estado critico.

Como isso tudo ocorreu? Conforme esclarece a notícia e a versão que foi dada por uma comissária de saúde da localidade, uma pessoa (nome não identificado) teve contato com um homem que morrera por estar contaminado pelo coronavírus, sendo este doente o fio condutor de toda a fatalidade da família Fusco. E por quê? Porque essa mesma pessoa que mantivera contato com o infectado falecido participou de uma das reuniões da família Fusco.

Essa notícia foi publicada no dia 21 de março de 2020 na Folha de São Paulo, no Caderno Mundo, p. A20. É só conferir. Já em nosso berço esplêndido, numa atitude precipitada e irresponsável, no dia 15 de março, cinco dias antes, o capitão, chefe do Poder Executivo federal, com suspeita de ser portador do vírus, até porque o resultado do seu exame não fora divulgado, comparece a uma manifestação golpista, para derrubada do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal, em pleno início da quarentena, para manifestar o seu desejo autoritário de governar à revelia da Constituição Federal.

Esse é um dos dramas institucionais vivido pelo povo brasileiro, representado por um governo distópico, com um discurso do mesmo tom e práticas de atos que não se coadunam com o exercício de um cargo tão relevante. As medidas tomadas, quando não são absurdas, no seu sentido de proteção da cidadania, afronta a Constituição Federal, solapando direitos dos trabalhadores brasileiros, como ocorreu com a recente medida provisória, que, entre outras matérias, trata, de forma obtusa, da suspensão do contrato de trabalho. Como Sísifo da mitologia, publica o ato pernicioso, inconstitucional, manda para o Congresso Nacional, depois, alertado por algum curioso de fora, tenta corrigir o grave erro. Isso é governar?

A distopia se agiganta a cada passo dado, de modo trôpego, pelo capitão. O bolsa família, um programa que recebeu avaliação positiva no mundo inteiro, inclusive por organismos da ONU, está sendo destruído pela sanha neoliberal do banqueiro Guedes. Uma raposa astuta que administra o ministério da economia, estando profundamente comprometido com os banqueiros e empresas transacionais. Não tem um mínimo compromisso institucional de reduzir as nossas desigualdades, que cada vez mais aumentam. O nosso país é um continente com estratificações sociais diferentes. Formalmente, todos são iguais; substancialmente, não. O grande Rui Barbosa já ensinava: “Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real.” Isso quer dizer: o capitalista é capitalista, e o trabalhador é trabalhador. Não podem ser colocados no mesmo patamar de igualdade. 

O discurso distópico do capitão, proferido nesta terça-feira, dia 24 de março, sinaliza um absoluto descompromisso com a ética da responsabilidade, porquanto contraria posições preventivas adotadas dentro do próprio governo, bem como prega, numa postura contraditória, a desobediência civil. É este o Brasil que se quer? 

* Membro AML e AIL.