Aureliano Neto*
Os aniversários eram assim: acordávamos ao som da música tradicional dos parabéns pra você. Muito cedo, o som alegre dessa canção atravessava toda a casa, indo até o fim do quintal, pulando a cerca de varas e estacas, e, daí em diante, se propagava pela vizinhança inteira. Todos sabiam que alguém aniversariava naquela casa. De véspera, havia o preparo dos doces, da comida para o almoço, alguma coisa especial, sem faltar a galinha assada e guisada, e o armazenamento no gelo das bebidas, refrigerantes, sucos, alguns vinhos e cervejas. Durante todo o dia, a radiola tocava as canções que eram os sucessos nas rádios. Beber, ouvir música e comemorar a data bem festiva era o centro das emoções. A vida naquele dia se resumia ao aniversário. Os vizinhos mais íntimos participavam. Pelas sete horas da noite, os convidados (ou meramente avisados do acontecimento) chegavam. O almoço era o ponto alto da comemoração. Todos à mesa, para degustarem a comida preparada em homenagem ao aniversariante. A festa não parava. A música da radiola servia de pano de fundo para os risos e as trocas de brincadeiras entre os convivas.
Mas, nunca - é preciso ser dito - nunca fora meu aniversário. O meu aniversário mesmo consistia em ir à casa do meu pai e de minha mãe para receber a bênção e ouvir de viva voz os parabéns e também o relato do momento em que nascera. Natal e aniversário, para mim, sempre foram momentos corriqueiros, àquela época. Dei por mim que era Natal certa vez (que o tempo deixou tão distante) em que, indo à casa do meu tio João, recebera de presente uma baratinha amarela (modelo de carro de corrida). Era um dia daqueles de muita chuva. Como toda criança, fiquei muito alegre com o presente. Voltei para casa do meu avô, vencendo os pingos torrenciais da chuva. Sentei-me à porta num tamborete. Pus uma tábua lisa, em declive, e fiquei a brincar com o carrinho, fazendo-o descer e subir na tábua, que servia de rampa, com um fio amarrado na dianteira. Guardei esse presente comigo durante muito tempo, e ainda o guardo dentro de mim. Lembro-me, por esse fato rememorado, do grande escritor William Faulkner que nos diz que "o passado nunca morre; sequer é passado". O passado nos persegue em todos os passos de nossa vida. Estou a ler o romance de um outro escritor estadunidense, em que um dos personagens principais é um criminoso patológico, que, ao se questionar por que não conseguia se conter, responde a si mesmo que se tornou um homem com muitos problemas não apenas por causa do seu DNA, mas porque assim a sociedade dele exigia. O passado para ele nunca morreu. Sequer fora passado. Faulkner sempre esteve certo.
Às vezes o passado é cruel. Ficam estigmas. Conta-nos recente notícia de uma revista semanária que uma mulher casada vivia de forma tranquila com o seu marido. Muitos anos de vida em comum e nada abalava essa convivência. Os fatos dizem que o filho do casal, numa aula de biologia, teve a curiosidade despertada, quando lhe eram ensinadas as diversas combinações dos tipos sanguíneos, o que fez com que a sua curiosidade da nascença o fustigasse, já que os pais tinham o sangue tipo A, e o sangue do curioso era tipo B. Questionados os pais sobre essa incongruência genética, a tal curiosidade fez com que a mulher admitisse que traíra o marido tempos atrás, e o tipo de sangue do seu amante era B. O casamento não resistiu à descoberta da curiosidade sanguínea. Não agüentou o peso do passado, desvendado pelo filho. Mais uma vez Faulkner está certo: o passado sequer é passado, daí a sua cruel ou doce imortalidade.
Ao fazer vinte um anos, quando cursava Direito, quis comemorar o meu aniversário. Foi a primeira comemoração natalícia na qual consegui reunir os amigos. Gastei uns trocados: comida, bebidas e recepção aos poucos mas fiéis companheiros. Nem todos compareceram, até porque poucos foram os convidados. Passado esse tempo, que ficou lá bem atrás, lembrei-me de Fernando Pessoa, que, no poema Aniversário, numa das estrofes, referindo-se ao tempo depois em que festejavam o dia dos seus anos, evoca: "Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus! / Hoje já não faço anos. / Duro. / Somam-se-me os dias. / Serei velho quando o for. / Mais nada. / Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira."
O aniversário é data sempre festiva, ainda que o tempo festejado tenha cruelmente passado. E se comemora esse passado, porém desejando ir ao futuro, transpondo-o na essência do viver. Os primeiros momentos desse tempo se implantam em nós mesmos e contribuem para constituir o DNA de toda nossa vida. Ferreira Gullar tem um belíssimo poema que faz parte do seu festejadíssimo livro Em Alguma Parte Alguma, que se chama O que se Foi. O bardo maranhense, ao falar do tempo passado, faz esta advertência: "O que se foi se foi. / Se algo ainda perdura / é só a amarga marca / na paisagem escura." E conclui fatalisticamente: "Portanto, o que se foi, / se volta, é feito morte." Não serei tão fatalista como Gullar. Embora o dia da comemoração dos anos seja o ufanar-se de vencer o tempo , nem sempre o que se foi, se volta, constitui o desencontro com o futuro, uma vez que este está em nós mesmos e na possibilidade de superar esse desencontro fatal, ao encontrar-se o ser nascido e vivido com a sua história, o que o faz imortal. Nesse devaneio de superação, Clarice nos aponta o caminho: "Mas um dia ainda hei de ir, sem me importar para onde o ir me levará."
aureliano_neto@zipmail.com.br
Comentários