Aureliano Neto*
Por amor as pessoas são capazes de tudo fazer. Ou mesmo de nada fazer. Matar ou morrer, ou ainda ficar inerte numa solidão depressiva. E o que melhor: pode-se viver de amor e para o amor. É verdade: pode-se viver e, ainda, morrer-se de amor. Atentem para as últimas notícias dos nossos jornais e televisão. Sentindo ciúme, a mulher, que esteve no amplo e excessivo noticiário de São Paulo, matou o marido e, não se contentando em só tirar-lhe a vida, o esquartejou, não se sabendo se com uma afiada faca de cozinha, ou se fez uso de instrumentos contundentes e cortantes, como dizem os legistas, próprios de açougueiros. O certo é que o ciúme de que foi acometida e a fez ficar possuída de cólera, foi uma decorrência do amor não correspondido, sobretudo quando tem do outro lado a outra. Assim, todo ato lúgubre por ela praticado se vincula a esses dois elementos emocionais: o amor e o ciúme.
Fernando Pessoa, também como Machado, sempre referido neste espaço, ao falar da vida no Livro do Desassosssego, afirma que "a vida é uma viagem experimental, feita involuntariamente. É uma viagem do espírito através da matéria, e como é o espírito que viaja, é nele que se vive". E conclui Pessoa: "O que se sentiu foi o que se viveu." Nessa viagem, que é a vida, se se sentiu amor, aí está a essência do viver. Mas, se se sentiu apenas ódio, desejo, nisto está o prazer fugaz da vida. Quem ama não sente ciúme, já que este é a contraface doentia do amor. Revendo Love Story, filme dos anos 70, os dois personagens se desentendem. Um deles, reconhecendo que errou, pede desculpas. A resposta dada retira o sentido da mágoa de quem ama: "- Não se desculpe. Amar significa nunca ter que pedir desculpas (perdão)." Aí está um dos elementos essenciais do amor: saber perdoar, sem que haja necessidade do pedido de perdão. Isso exclui o ciúme, que, patológico, elimina a essência do ato de amar.
Vejam bem: o fundamento do amor cristão está assentado na máxima: "amar o próximo como a si mesmo". Freud, em O Mal-Estar da Civilização, diz que se trata de um dos preceitos ideais da sociedade civilizada. Mas, ao mesmo tempo, o criador da psicanálise antepõe a esse axioma uma série de obstáculos, isso com referência ao outro objeto do amor, o próximo. E Freud argumenta: "Meu amor é algo precioso para mim, algo que não posso despender irresponsavelmente." Para ressaltar: "Ele me impõe deveres, os quais tenho que me dispor a cumprir com sacrifícios. Quando amo a outrem, este deve merecê-lo de alguma forma. (...) Ele (o próximo) o merece, se em importantes aspectos semelha tanto a mim que posso amar a mim mesmo nele; ele (o próximo) o merece, se é tão mais perfeito do que eu que posso amar nele o meu ideal de mim." Assim, na concepção do mestre da psicanálise, o próximo a ser amado tem que ter uma projeção nele das virtudes de quem o ama. Daí o sentido do merecimento preconizado por Freud. Um merecimento voltado para aquele que direciona o seu amor ao outro. Emerge desse questionamento a necessária indagação: como amar quem eu não conheço? A resposta sai do plano da psicanálise e vai repousar na parábola do bom samaritano, donde decorre a indagação: quem é o próximo? Aquele que deu assistência ao necessitado, ou o que nada fez?
Zygmunt Bauman, na obra Amor Líquido, professa a lição de que o amor tem a força de aprisionar e de colocar o detido sob custódia. Assim, o amor prende para proteger o prisioneiro, não se sabendo se quem ama ou quem é amado. Por isso mesmo, desejo e amor se encontram em campos opostos, diz. Bauman afirma: "O amor é uma rede lançada sobre a eternidade, o desejo é um estratagema para livrar-se da faina de tecer redes." Desse modo, o amor tem como um dos seus fundamentos a perpetuação do desejo. Quem ama, deseja sempre está com o outro. É o desejo perpetuado pelo amor. Enquanto, no outro lado, o desejo saciado, e só o desejo, foge dos grilhões do amor. O ficar é desejar. Expressa o que, no mundo atual das coisas efêmeras, se chama de amor líquido, onde as relações são diluídas para que possam ser rapidamente consumidas. O compromisso vai até o limite do desejo. Esgotado esse, acabou-se tudo. Transita-se para novas vivências, que necessariamente não quer dizer promiscuidade. Mas novas experiências de renovação de sentimento, ainda que representem o prazer fugaz.
Em A Revolução do Amor, obra do filósofo Luc Ferry, ele fala do nascimento de um segundo humanismo, que veio com o surgimento do casamento com amor. Na Idade Média e especificamente na Europa, o casamento era feito por conveniência, nunca originado da paixão amorosa, reflexo do sentimento que atraía os pretendes ao consórcio. A grande revolução na formação da família se deu com o casamento baseado nos laços de afetividade entre aqueles que, unidos para sempre, até que a morte os separe, passaram a consociar-se por seu livre arbítrio e não o serem por força de uma cultura utilitarista que lhes era imposta.
Portanto, amor e desejo são sentimentos que podem se completar, mas que não têm o mesmo significado e a mesma dimensão afetiva. Pode-se desejar sem amar, assim como pode-se amar com o desejo arrefecido pelo tempo. Do mesmo modo, pode haver sexo sem amor, como pode haver amor sem sexo. O desejo se esgota na fugacidade do prazer; o amor tem um sentido de perpetuidade. Eis o que quero dizer: - ame e deseje, na medida em que o desejo não esgote, o amor verdadeiramente sentido. Amar e desejar são moeda de dupla face, muitas vezes mais cara do que coroa.
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