Aureliano Neto*
"Amanheceu o tempo escuro, ventos fortes soprando as folhas das grandes árvores do parque (ou da praça), galhos velhos quebrando-se, rosas desfolhadas pelo chão. Nada para predispor a alma às alegrias que o sol traz àqueles que gostam de viver ao ar livre, de banhar-se no mar, de fazer infinitas caminhadas pelos lugares ermos." Pior que a natureza feiosa, ora descrita, vestida na indumentária da morbidez desse cotidiano, é o farto e cansativo noticiário dos jornais e televisões. Parece uma cantilena desvairada, num estribilho alucinado de agressiva e péssima música sertaneja, repetido à exaustão, a matraquear em nossos ouvidos, como se fôssemos surdos aos seus ignotos reclames. Triste, para alguns, mas, às vezes, alegre realidade para outros.
A parte introdutória e em aspas não é de minha autoria. Para ilustrar, apropriei-me, retirando-a de uma crônica de Austregésilo de Athayde, publicada nos anos 60 na revista O Cruzeiro, em 10 de novembro de 1962. Bem antiga, não é mesmo? Nada obstante, atual. O clima deve ter mudado, porém o conteúdo continua o mesmo. Quantos amanheceres se sucedem e se têm sucedido? Tempo escuro, vento forte. As árvores se balançando, as folhas caindo. E as rosas se despedaçando em nosso caminho. As notícias, no curso dos anos, em que pese o lirismo do dia, se repetem: corrupção, morte, assassinatos, seqüestros, roubos, extorsões, desvio de dinheiro público. Ainda assim, desde o descobrimento, de 1.500 para cá, segue o país o seu trajeto, superando todas as intempéries. No dizer de Gonzaquinha, é a vida, é a vida e é a vida. E nos conclama: viver e não ter vergonha de ser feliz. Enfim, é a vida...
Quando fazia o primário e parte do ginásio, a revista da moda era O Cruzeiro, aguardada com ansiedade por todos. Quinhentos mil exemplares representavam o número assombroso, para época, de sua circulação nacional. Ainda garoto ia, domingo assim, domingo não, à barbearia de "seu Dezoito", onde a minha rebelde cabeleira era desbastada à máquina zero. A conversa era qual a última do Amigo da Onça. Essa barbearia ficava localizada, antes da mudança, na Rua dos Caranquejos, numa palafita. Lembro ainda da maré alta, a chamada maré de lua cheia, que, em algumas manhãs de domingo, batia com insistência no assoalho que dava sustentação às cadeiras dos barbeiros. Deu-se a mudança e foi para a feira da Macaúba, com um acesso bem melhor. As paredes, de madeira, eram revestidas com as páginas inteiras que traziam a charge do Amigo da Onça. Eram todas de um colorido alegre, que obrigava o leitor a decifrar o sentido do humor espirituoso de Péricles, o criador dessa personagem, que ficou para história do sarcasmo brasileiro.
Mas, o que tem tudo isso a ver com o título amar é sofrer? Quase nada. Ou tudo. Depende de como percebermos o sentido do tempo e da vida. Pois bem. Amar é sofrer é o título de um filme, que teve a imensa felicidade de reunir os astros Bing Crosby, no papel de Frank Elgin, um ator fracassado pelo alcoolismo e que desesperado, sem acreditar em si mesmo, tenta voltar ao sucesso, Grace Kelly, a grande atriz inglesa, que é a senhora Georgie Elgin, a sofrida mulher de Frank, que recorre a toda sua força persuasiva para fazer com que o marido, alcoólatra, acredite nele mesmo e supere as dificuldades para alcançar o sucesso, e William Holden, como Frank Bernie, diretor da peça musical, que acredita nas possibilidades artísticas de Elgin. Todo o enredo da história tem essas personagens como pontos referenciais. E entre elas o amor. Há algum sentido machadiano no desenvolvimento do enredo, caracterizado pela dúvida. Georgie ama Bernie, ou há apenas uma possibilidade de amá-lo? Eis a questão. Frank Elgin, não acreditando que superará as suas limitações, que decorrem das suas frustrações como pai, cujo filho morreu quando estava sob a sua responsabilidade, transfere para a mulher a culpa de não poder vencer. Bernie, a princípio, acredita nessa versão justificadora do medo de não vencer os obstáculos que o próprio Elgin põe no seu trajeto. No fim, a descoberta. E, no fim, o surgimento da afetividade entre Georgie e Bernie. Frank Elgin vence as suas limitações e consegue ser o ator que fora antes. Crê, então, que Georgie não mais o ama. Bernie venceu duplamente. Conforma-se com esse doloroso desfecho. Segue, só, o seu caminho. Mas ela não o deixa. Vai ao seu encontro. Enfim, amar é sofrer. Grace Kelly é laureada com o Oscar de melhor atriz. Ano: 1954.
Vendo esse filme e lendo a revista O Cruzeiro, antiga pelo tempo e não pela atualidade, lembrei-me de um livro de João Mohana, que estava escondido na prateleira de minha biblioteca - Não Basta Amar para Ser Feliz no Casamento -, em que esse grande sacerdote e escritor, ao fazer uma profunda análise sobre o relacionamento conjugal, afirma, de forma peremptória, não existir amor sem admiração, isto é, sem a mistura de outros ingredientes. Fulano ama beltrano não só porque o ama, mas porque há outros elementos que o atraem, de natureza material e espiritual, que se maturam durante o tempo e fortalecem afetivamente a união. Diz Mohana: "O casamento feito simplesmente com amor é um edifício levantado com tijolos, sem cimento. Ventanias, mesmo distantes, são capazes de derrubá-lo." O amor, maturado por outros elementos afetivos, justifica o desfecho final de Amar é Sofrer e vai de encontro ao que disse André Maurois: - "Um casamento feliz é uma longa conversa que sempre nos parece curta demais." Essa inusitada mistura de O Cruzeiro, do amor e da lição de Mohana nos desafia a refletir sobre o tempo de viver e de amar.
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