Mas que calor ô ô ô ô ô ô. Atravessamos o deserto do Saara, o sol estava quente e queimou a nossa cara. Mande água pra ioiô, mande água pra iaiá, Alá, meu bom Alá. Se não mandares água, meu bom Alá, com a Cantareira secando, neste carnaval abrasador, só resta pedirmos ao nosso bom Deus daqui desta terra abençoada, para, em ritmo de marchinha, mandar chover três dias sem parar, e, ainda, para isso, clamando sem cessar: tomara que chova três dias sem parar, já que toda a grande mágoa é que lá em nossa casa não tem água e precisamos nos levar. Mas, meu bom Deus, esse clamor é mais antigo do que a lata d’água na cabeça, levada por Maria, que sobe o morro e não se cansa, e, lavando roupa no alto, na luta pelo pão de cada dia. Tanto é antigo que já se cantava que o Rio de Janeiro é a cidade que nos seduz, pois de dia falta água e de noite falta luz. Abre-se o chuveiro e não cai nem um pingo desde segunda até domingo. E o poeta popular satirizava: “Eu vou pro mato / Ai! pro mato eu vou / Vou buscar um vagalume / Pra dar luz pro meu chatô.”

Eram os temas sociais das marchinhas de carnaval, inteligentes, poeticamente bem elaborados, recheados de humor, irreverentes, satíricos. Crônicas de acontecimentos vividos pelo povo brasileiro. Pode-se, ouvindo-as as nossas marchinhas carnavalescas, conhecer parte substanciosa da história do Brasil. No dizer de Rennan Martins, “a cultura brasileira e suas marchinhas são emblemáticas quanto à irreverência e à crítica política. Estamos em 2015 e quando olhamos para letras que já fazem mais de 60 anos, percebemos o quão atuais e pertinentes elas continuam”. É verdade. Maria, da lata d’água, não mais sobe apenas o morro, está em outras favelas, lavando a roupa, se tiver água, e lutando pelo pão de cada dia. O Brasil mudou. Não há dúvida. Mas muito ficou que não foi alcançado por essas grandes mudanças.
Mas deixemos de lado todas essas mazelas. É carnaval. Domingo de carnaval. E porque é domingo de carnaval, é hoje que eu vou me acabar. Com chuva ou sem chuva eu vou pra lá. Eu vou, eu vou para Jacarepaguá. Mulher é mato, e eu preciso me arrumar. Pois, neste domingo e tantos carnavais, há tanto riso, tanta alegria, mais de mil palhaços no salão (todos nós somos momentaneamente palhaços), e o Arlequim está chorando por amor da Colombina no meio do salão. E eu sou apenas aquele Pierrô que te abraçou e te beijou meu amor. E, assim, vou beijar-te agora, não leves a mal, hoje é carnaval. Enfim, são tantos risos, tantas alegrias. E o Pierrô apaixonado, que vivia só cantando, por causa de uma Colombina, acabou chorando, acabou chorando. E a Colombina entrou num botequim, bebeu, bebeu, saiu assim, assim, dizendo: Pierrô cacete, e foi tomar sorvete com o Arlequim. E mais: um grande amor tem sempre um triste fim, com o Pierrô aconteceu assim, levando esse grande chute, foi tomar vermute com amendoim. Noel Rosa não deixa por menos nessas questões de amor e traição. Por isso, o seu Pierrô apaixonado, que beijou e abraçou a Colombina, por ela desprezado, foi tomar vermute com amendoim. Mas nem por isso, a Jardineira ficou tão triste, embora a camélia tenha caído do galho, tenha dado dois suspiros para depois morrer. Que pena da nossa Jardineira, lamentada todos os anos, em cada carnaval, mas que não se condoeu do Pierrô apaixonado.
Paramos a travessia do deserto do Saara. Mas que calor, ô ô ô ô ô ô. Mande água para ioiô. Mande água para iaiá. Daqui não saio. Daqui ninguém me tira. E insisto: daqui não saio. Daqui ninguém me tira. Onde é que eu vou morar? Tem paciência de esperar! Inda mais com quatro filhos onde é que vou parar? Não há outro jeito. Nesse mundo ninguém perde por esperar, mas já dizem por aí que a vida vai melhorar. Então, minha amiga, vai com jeito vai, se não um dia a casa cai, menina! Pois bem. Conselho ninguém dá. Mas se alguém te convidar pra tomar banho em Paquetá, pra pic-nic na barra da Tijuca, ou pra fazer um programa no Joá, menina, vai, com jeito vai, se não um dia a casa cai. Aproveite este domingo, é carnaval, e vai com jeito, vai, se não a casa cai. Pois, se não vai, pode partir, e quem parte leva saudades de alguém, que fica chorando de dor. Não chores, apenas cantes. Insisto: é carnaval. Domingo de carnaval. Com chuva ou sem chuva, a folia nos desafia a ir com muito jeito.
Então vá, com jeito, vá. Não procure por Zazá. Neste carnaval, ela saiu dizendo, vou ali, e volto já, mas não voltou por quê? Por que será? Cadê Zazá, Zazá, Zazá? Nem queira saber aonde anda o velho gagá, companheiro abandonado de Zazá, como Pierrô apaixonado e abandonado pela Colombina, porque o velho gagá já deu o que tinha que dar. Procure a Aurora. Ai se você fosse sincera, veja só que bom era. Mas, por vias das dúvidas, dê-lhe um lindo apartamento com porteiro e elevador, ar refrigerado para os dias de calor e madame antes do nome, e vá com ela de bandeira branca, na paz do amor e na folia deste feliz carnaval. Enfim, amor de carnaval é inconstante, desaparece na fumaça, saudade é coisa que dá e passa. E vamos para segunda e terça. Na quarta toda se acaba na melancolia das cinzas, já que, como profetiza Vinícius, ninguém ouve cantar canções. Ninguém passa mais brincando feliz. E nos corações saudades e cinzas foi o que restou.