Cena n.° 1

O pássaro, penas de um amarelo queimado, com alguns levíssimos traços pretos, equilibrava-se no galho de uma árvore e praticava o seu sagrado ofício do canto matinal. O canto se espalhava por toda a área aberta, salteada por uma ou outra árvore, e invadia o casarão de muitas janelas que ficava mais um pouco à frente. Um jovem que fazia limpeza, ainda jovem, utilizando-se de um pano de chão, que esfregava insistentemente no assoalho, teve a sua atenção despertada pelo canto solitário da ave. Aproximou-se da janela, abriu um vão da cortina. Olhou e viu o pássaro a equilibrar-se no galho e a trinar a sua cantoria. Tirou de um saco, que carregava a tiracolo, uma baladeira. Armou-a. Mirou o pássaro e disparou, acertando-o. E... com a violenta pancada, o indefeso pássaro cantador despencou do galho. Na cena final, ele está quieto no chão, tendo uma das asas abertas e o bico cravado na terra seca, salpicada também de folhas secas. A cena conota uma situação de secura. De falta de sensibilidade. Nada semelhante a outras cenas em que a personagem é posta numa situação de carência para sobreviver e mata o animal por força desse estado de necessidade. O matar passa a ter um significado, ao menos justificável. O nosso pássaro foi vítima de motivo fútil.

Cena n.° 2

No rosto impassivo do atirador, nenhum sentimento, ainda que insignificante, de alegria ou de repulsa.
Senta à mesa e come, sorvendo a colheradas uma sopa, ora condimentando-a a algum pedaço de pão. Entrete-se com a comida, absorvendo cada naco de pão, como se fosse o último alimento de sua vida. E pássaro continuava na sua finita quietude esparramado no chão seco, bem junto ao tronco da árvore, onde antes da fatalidade reinava espalhando em torno de si a melodia do seu canto. Tudo silêncio. Apenas ouve-se o barulho de cada colherada do faminto matador de pássaros.

Cena n.° 3

Depois, uma procissão. Dessas procissões em que as pessoas, vestidas com as suas roupas, de fim de semana, novas, engomadas, saem pés descalços, pisando no chão duro, sol quente, os homens de chapéu, as mulheres com pano enrolado na cabeça, alguns pagando promessa, outros pedindo a Deus e ao santo que os livrem dos seus pecados. Todos cantam Ave-Maria:
Ave
Avé
Avé 
Avé
Maria. 
Um canto sem sincronia, mas de profunda fé.
Ele carrega contrito o andor. Como se fosse o sacrifício da cruz, para que seus pecados sejam perdoados.
Depois, começa tudo outra vez. Os mesmos pecados, as mesmas súplicas. E haja santo para aguentar tantos pedidos. Mas enfim, quem mandou ser santo. Por isso, que outros pecadores jogam tudo nas costas de Cristo. Gil, o nosso Gilberto, na sua música Procissão, fez um retrato pungente desse sentimento, e, numa das estrofes, faz um alerta: Eu também / Tô do lado de Jesus / Só que acho que ele / Se esqueceu / De dizer que na Terra / A gente tem / De arranjar um jeitinho / Pra viver.
Ave Maria! Que ajude esse povo que suplica tão pouco, ora um vestido pra Maria, ora um roçado pro João.

Cena n.° 4

Os dois na cama de um quarto. Um hotel de algumas estrelas. Desses que servem café da manhã, repleto de iguarias pra todo gosto. Cedo, os primeiros raios do sol, com a volúpia da indiscrição, rompe algumas frestas da cortina para dizer que o novo dia chegara.
De costas, ele lê jornais e revistas pelos quais ela não devota o mínimo interesse. Ainda de pijama e a luz discretamente acesa. Ela, do outro lado, pernas ora esticadas, ora cruzadas, a princípio, imersa nas mensagens do celular. Momentos em que lê com a avidez de um interesse incontido, ou momentos em que tecla avidamente para transmitir algum recado. Os dois perto e separados. Apenas dois anônimos que acordaram num quarto de hotel. Ela ainda com a escassa roupa da noite bem dormida. Um abraçado ao outro. Os dois vestidos na sua fantasia de prisioneiros de suas individualidades.

Membro da AML e AIL.