Quintana, o poeta da simplicidade contraditória, é quem nos diz esse verso no poema Bola de cristal, publicado em A cor do invisível: A praça, o coreto, o quiosque, / as primeiras leituras, os primeiros / versos / e aquelas paixões sem fim... / Todo um mundo submerso, / com suas vozes, seus passos, seus silêncios / - ai que saudade de mim! Nesta primeira parte, o poeta busca e clama por um sentimento oniricamente contido "em todo um mundo submerso". Na segunda parte, Quintana, reverberando certa melancolia do que ficou, como que se afasta daquele momento: Deixo-te / com os teus sonhos de outrora, os teus livros queridos / e aquelas paixões sem fim! / e a praça... o coreto... o quiosque / onde compravas revistas... / Sonha menino triste... / Sonha... - só o teu sonho é que existe.
Esses sentimentos nos carregam para muitos lugares, ou nos fazem emergir em cada momento. No espaço e no tempo. Sonhamos tantos sonhos. E um desses sonhos sonhados é a felicidade de ser criança. Ser avô e avó é também isso. O homem tem em si a criança enjaulada. Machado de Assis foi quem afirmou que a criança é o pai do homem. Deve ser. Eu, por exemplo, tenho momentos que ainda penso que sou criança. E ajo como criança. Ainda mais quando estou ao lado de "outra" criança.
Os poetas nos consolam e preenchem-nos com a lírica contida nos seus versos. Manuel Bandeira, no poema Profundamente, um dos seus preferidos, fala sobre isso. Quando ontem adormeci / Na noite de São João / Havia alegria e rumor / Estrondo de bombas luzes de Bengala / Vozes cantigas e risos / Ao pé das fogueiras acesas. / No meio da noite acordei / Não ouvi mais vozes nem risos (...) / - Estavam todos dormindo / Estavam todos deitados / Dormindo / Profundamente (...) Hoje não ouço as vozes daquele / tempo / Minha avó / Meu avô / Totônio Rodrigues / Rosa / Onde estão todos eles? / - Estão todos dormindo (...) / Dormindo / Profundamente.
Num São João - e vai-se algum tempo dessa curiosidade passadista -, fui a minha rua. A rua por onde muito vivi e andei. Como Quintana, fui escavar "todo um mundo submerso". Queria ver as fogueiras, a queima dos fogos, e ouvir os incessantes estouros das bombinhas. Queria ver aquelas pessoas amigas e solidárias na alegria e na dor, sentadas à porta, aquecidas pela labaredas crepitantes das madeiras incandescentes, passando fogueira: São Pedro, São Paulo, São Felipe e São Tiago, quero que Maria seja minha comadre. São Pedro, São Paulo... quero que Zé de Matilde seja meu namorado. Desci resoluto por aquela rua comprida, por onde joguei bola (de meia, de seringa, ou de borracha, nos incansáveis dois a dois), empinei papagaio, joguei bolinha de vidro (de gude), brinquei de pegador, preto fugido, esconde-esconde, e fui crescendo, crescendo, e crescendo, e passei para outras brincadeiras menos lúdicas e mais comprometedoras. Eram 21 horas. Entrei naquela rua de toda uma vida. E como no poema de Manuel Bandeira, ...todos dormindo / ...todos deitados / Dormindo / Profundamente.
Não podia desistir. Seria covardia de minha parte sepultar, por essa breve frustração, esse sonho inacabável, que guardo aprisionado dentro de mim. A criança em mim é insistente, todavia sem qualquer sintoma patológico, quando menos espero, ela pula pra fora, vem à tona num ímpeto incontrolável. Não tenho a saudade dos meus oito anos, como versejou o grande romântico Casimiro de Abreu, embora não repugne esse romantismo sem retorno. Mas. nesse vácuo do sentir, impõe-se obsessivamente uma saudade de mim, que me faz voltar a Quintana: Sonha, menino triste... / Sonha... / - só o teu sonho é que existe.
Insistente, por esses dias, voltei à rua dos meus sonhos, para, sentindo-a nas minhas entranhas, matar essa saudade de mim. E aí, caminhei pelo seu asfalto aqui e acolá desnivelado. Venci com extrema força de vontade esses ínfimos obstáculos. Ainda bem. O sonho que me veio, sem cessar, foi daquela rua sem a modernidade do negro asfalto. Tudo era barro, piçarra, jogada após o aguaceiro que descia com uma força destruidora, levando tudo que encontrava pela frente, até desaguar na maré. E fui descendo e vi D. Deja na janela com D. Eunice, as mãos no queixo, encostada. Conversavam e riam. D. Maria do seu Vilarinho acabara de entrar. Janela escancarada. Fora lavar roupa no quintal. Sua rotina. Tomara uma talagada de tiquira para esquentar. Seu Vitório, meu primeiro mestre de ofício, estava na porta. Alguns velhos companheiros estavam na esquina. Um ou outro sentado numa pedra branca. Trocavam ideias sobre um filme de faroeste. Cada um descrevia as cenas com os gestos do mocinho ao abater os bandidos. Um a um. Ainda era cedo. Jogava-se uma pelada. O dividido ultrapassaria a hora do almoço. Todos gritavam para ter o a bola. Encostei na quitanda do Juarez. Oitenta e um anos. Na minha visão sonhadora, não se passara tanto tempo assim. Vi-o no balcão a atender a nossa patota: Sinhô, Zé Diniz, Quidinho, Chefe Biné, Flávio, Gago, Padeirinho e eu. Com a paciência amiga para aturar esses chatos. Na outra esquina, Elói. Vejo-o ainda com a sua vasta barba enegrecida, a receber e guardar meus livros, para livrar-me da preocupação de perdê-los. A noite era sempre uma criança.
E em cada janela, uma ninfa inspiradora com o sorriso cativante e provocativo. Esse é apenas um pedaço da minha rua. Tem muito mais. Enfim, a vida é muito curta para ser pequena.
* Membro da AML e AIL.
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