Escapei incólume. Fui o primeiro dos treze irmãos a chegar a esse planeta Terra. Nasci, ainda bem, numa época do culto aos filhos, em que a família era constituída de uma prole infinita. Produzidos ano a ano, os filhos exigem escápulas em todas as paredes da casa para que as redes fossem estendidas umas bem pertinho das outras, e as conversas de ouvida, num ti-ti-ti e risos à socapa, ajudassem a chamar o sono. As casas tinham aqueles corredores imensos, que se iniciavam da entrada e iam paralelos aos quartos até alcançar os fundos. Espaço não era problema nenhum. Assim como filhos eram uma dádiva divina. Fosse menino ou menina, eram recepcionados com o sempre repetido axioma da fé: o que Deus dá, é bom. E, com as dificuldades da vida, que eram inúmeras, recebiam a rígida educação doméstica e comida, servida à mesa, pela mãe abnegada que sabia fazer do pouco muito. Pais eram pais e crianças eram crianças. Cada macaco no seu galho. Um não entrava na área de competência do outro. Havendo desrespeito a essa sagrada regra de convivência, o mais fraco suportava as consequências, cuja sanção era imediata e profilática. No máximo, se tinha aqui e acolá um incorrigível ladrão de galinha. Mas não por falta de reprimenda. Não. Essa reles distopia é parte da índole do ser humano. Uma deformação atávica.
Tive também a felicidade de nascer na época em que juristas como Frederico Marques e Aníbal Bruno acreditavam que vida do feto é um bem superior ao livre arbítrio da mãe, atribuindo ao Estado o cuidado da criança após o nascimento, caso a mãe não a aceitasse. Prevalecia, em todos os termos, com as exceções conhecidas, o interesse da vida intrauterina. Em decorrência, o aborto, ainda que eugênico, não era admitido, mesmo se tratando de feto comprovadamente com anencefalia, doença causada pela má formação do cérebro, que já foi objeto de decisão do Supremo Tribunal Federal, que concluiu pela prática abortiva.
No momento, volta a ser discutida no STF a possibilidade da descriminalização do aborto, tendo sido aberto o debate público para que sejam ouvidos os especialistas nos mais variados campos da ciência. O Supremo, provocado por ação de controle de constitucionalidade (arguição de descumprimento de preceito fundamental), logo estará se manifestando, com ou sem restrições, se o aborto pode ser praticado no Brasil, com a segurança médica do sistema público de saúde.
Por enquanto, a questão se polemiza em várias esferas de pensamento. Uns afirmam que se trata de um direito da mulher: o corpo é dela e ela faz dele o que bem entender. Outros negam esse direito, sob o forte fundamento de que o bem jurídico protegido é a vida. E o aborto é, numa concepção simples, a interrupção do processo gestacional (portanto, da vida) antes que a vida fora do útero seja biologicamente viável. Ou seja: ceifa-se o desenvolvimento completo do nascituro, matando-o.
Sobre o bem jurídico "vida", não há dúvida de que o feto se enquadra nessa concepção. A Constituição Federal no art. 5.º, logo na parte introdutória, garante a inviolabilidade do direito à vida. Desse modo, pode-se afirmar que a vida é um bem jurídico fundamental, protegido em todas as esferas normativas. Tanto que o nosso Código Penal criminaliza o aborto, cuja conduta consiste na interrupção dolosa ou culposa da gravidez, com a eliminação do feto, provocando a sua morte intrauterina. Por isso mesmo, o nosso ordenamento jurídico protege a vida de forma ampla, desde o momento da concepção, embora o nascituro não seja considerado pessoa, mas, ainda assim, com direitos garantidos pelas nossas leis civis e penais. Essa situação de resguardo do nosso ordenamento jurídico pode ser exemplificada no âmbito securitário, em se tratando de DPVAT. Caso a mulher grávida venha, num acidente automobilístico, a perder o filho, em gestação, receberá o benefício desse seguro em face do sinistro morte.
Cristo, em algumas passagens do Evangelho, destaca a criança como símbolo da salvação. E Ele exorta esse sentido salvífico: "Em verdade vos digo, se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, não entrareis no Reino dos Céus. E quem acolher em meu nome uma criança como esta, estará acolhendo a mim mesmo." Em outro momento, imperativamente diz: "Deixai as crianças, e não as impeçais de virem a mim, porque a pessoas assim é que pertence o Reino dos Céus." Alguém, refutando do alto de sua sapiência, retrucará: - O que tem isso a ver em eu, de forma livre, fazer uso do meu corpo, e matar o filho que estou gestando? Talvez tenha alguma relação, ou não tenha nenhuma. Depende da perspectiva ética, moral, religiosa de cada um. Apenas digo: sou daqueles que defende a vida, e a sua inviolabilidade está prevista na Constituição Federal. Mas o direito à vida, como qualquer bem jurídico, não é absoluto. Daí encontrarem-se no Código Penal as excludentes da ilicitude. O ilícito é praticado, todavia há uma justificativa, excluindo a punição.
Pois bem. Vivemos outros tempos. Tanto que o Superior Tribunal de Justiça considerou relevante o direito de visita a um animal de estimação após a separação de um casal. Repito: de fato, os tempos são outros. Pode ser que um filho em gestação não mais seja tão relevante, em face de outros valores, porém um animal, com vínculo de afetividade ao cônjuge separado, o seja. Chegará o tempo, quem sabe, que será bem mais seguro nascer cachorro do que gente, haja vista o gravíssimo perigo de ser feto. Eis aqui a grave questão!
* Membro da AML e AIL.
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