Você tinha alguma dúvida? Ainda que uma reles e insignificante dúvida? Confesso: eu nunca tive qualquer dúvida, embora não tenha o dom de praticar o ilusionismo, com a virtude de prever o futuro. Não. E não. De vez em quando jogo em loterias, mas passo bem longe do resultado. Se for para acertar cinco, no máximo consigo o acerto de um ou dois números, ou mesmo fico no zero. Sou um fenômeno negativo em previsão. A depender disso, continuarei escravo dos meus parcos ganhos de magistrado e professor. E vou levando a vida, já que nem posso fazer um bico como vidente, pois com certeza, sem ilusões, seria um potencial fracassado. Mas, no caso dos 4 x 3, não tinha dúvida. Não era uma questão de adivinhar. De recorrer à bola de cristal. Pelo contrário, pairava no ar uma certeza de que tudo caminharia para esse fim. Alguns, otimistas na sua vocação de entender que prova é prova, chegam a afirmar que o fim foi trágico. Outros, menos otimistas, mais conformados, apregoam que justiça é isso mesmo. O sistema Globo, através do seu jornal, editado no Rio de Janeiro, fez um editorial violentíssimo acusando o tribunal (o dos 4 x3) de ter desconsiderado as provas, que apontavam para a prática de ilícito eleitoral, portanto aptas para autorizar a cassação da chapa em julgamento.
Há controvérsia. A turma do vice pensa de forma diferente. Eis uma das razões que andam desafinadas com o pessoal da Globo. E afirma, com boa dose de ironia, que a presidenta deposta deveria dar graças a Deus (a Deus, ou quem mais?) de ter o peemedebista na presidência, pois assim lhe foi garantida elegibilidade por 4 x 3. Sem maiores exames desse sério desentendimento, só nos resta recorrer a Shakespeare: há algo de podre no reino da Dinamarca.
Como não tinha dúvida, no dia dos 4 x 3, me desliguei, até porque ando ultimamente muito desconfiado do que sai da TV Justiça, nem sempre fazendo jus ao seu nome. Fui participar de um encontro na Escola Superior da Magistratura onde falaria sobre A revolução dos bichos, obra de George Orwell, que satiriza o regime stalinista, porém ainda bem atualizada, a nos desafiar fazer a sua releitura e pensar que o mundo de hoje, mesmo o que veste a fantasia da democracia, está cheio de Stálins, até porque o autoritarismo não é apenas exercido pelo ditador A ou B, da esquerda ou da direita. Na concepção de Vladimir Saflate, aqui sempre referido, "o autoritarismo pode se impor não através da censura e da proibição, técnicas bastante primárias. Ele acaba por se impor através de algo muito mais sofisticado: a irrelevância da verdade, a proliferação da frivolidade, a anestesia de quem não mais consegue sentir urgência alguma" (retirado do texto A festa não pode parar, pub. na FS, em 30/12,2016). Nesse sentido, talvez todos nós estejamos no campo do autoritarismo. Somos frívolos, damos pouca ou nenhuma relevância à verdade, e estamos indiferentes a tudo que está a acontecer em torno da gente.
Assim, no dia dos 4 x 3, além da nobre missão falada acima, estava eu a reler passagens contundentes do livro Quarto de despejo, diário de uma favelada, de autoria da escritora Carolina Maria de Jesus. O livro é composto de passagens naturalistas, que retratam a vida dos favelados. Seria bom que fosse recomendado a João Doria, o novo, no dizer de FHC, para que ele possa, com a leitura, conhecer melhor o ser humano, com as suas tragédias, nem sempre evitadas no curso de toda uma vida. Muito menos evitadas com práticas higienistas, típicas do nazi-fascismo, que abalaram mundo num determinado momento da sua trágica história. Numa das passagens Carolina de Jesus narra: - Aquele preto que cata verdura no Mercado veio vender-me umas batatas murchas e brotadas. Olhando-as, vi que ninguém ia comprar. Pensei: este pobre deve ter vagado inutilmente sem conseguir dinheiro para refeição. Perguntei-lhe se queria comida. - Quero! Dirigiu-me um olhar tão terno como se estivesse olhando uma santa. Esquentei o macarrão, bofe e torresmo para ele.
E Carolina vai contando o seu drama e da sua comunidade de pobres marginalizados. A gente fica a pensar que o quarto de despejo permanece incólume. Os 4 x 3 representam um sinal de irrelevância. Em justificativa a essa irrelevância, afirmou um dos juízes do alto de sua autoridade, ou melhor, do seu autoritarismo, segundo publicaram os jornais: - A Constituição valoriza a soberania popular. Ou ainda: - A cassação de mandato deve ocorrer em situações inequívocas. Mas que diabos, pensaram, indagando-se a si mesmos os favelados, personagens de Carolina de Jesus: - Que soberania popular? A que fora votada já tinha sido cassada pelo golpe. Restou o não votado, que não tem apoio popular. E o pior: atualmente nem da Globo, que nunca na sua história deixou de apoiar golpes, dos mais reles aos mais significativos. Além do mais, as tais situações inequívocas são mais ou menos como o caixa 2, que, na acepção do mesmo ministro, já foi ilícito, mas pode não ser mais. Ah!, reflete no fundo da sua irrelevância um dos favelados de Carolina de Jesus, e com alguma razão: por que diabos essa Operação Lava Jato chegou a Aécio, a sua querida irmãzinha, a Loures, amigo de confiança de Temer, e ao próprio? Resposta. Recorro, outra vez, a Shakespeare: há mais coisas entre o céu e a terra do sonha a nossa vã filosofia, e isso muito mais do que a tão decantada valorização da soberania popular, que serve mais como sofisma do que como justificativa.
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