Convenhamos, o título é grande, antijornalístico, mas se impõe pela necessidade.  Retorno a uma crônica bem antiga e me refiro a Coelho Netto, um maranhense que viveu boa parte de sua vida fora do Maranhão. Há uma crônica de sua autoria, em Canteiro de Saudades, cujo título é O ano novo. O cronista narra sua perplexidade sobre esta festejada data: “Falavam tanto do Ano Novo, que eu resolvi esperar a meia-noite”. Assim iniciou a vigília da meia-noite para ver a entrada do ano. Mas decepciona-se. Embora despertado pelos brindes à mesa, beijos, abraços e bênçãos, não conseguiu enxergar com os próprios olhos a presença viva do Ano Novo. Inconformado pela impossibilidade de presenciar a auspiciosa chegada do novo ano, foi até a mãe preta, para certificar-se da verdade, perguntando-lhe: “E o Ano Novo? Onde estaria ele?” A mãe preta dá a resposta àquele menino: “– No relógio, quando dá meia-noite, é o Ano Novo que entra. É assim.” Como a justificar a fantasia daquele menino, conclui, em frase definitiva, a expressar a imensidão do mundo: “O céu é um relógio grande.” O Ano Novo chegou, com todos os brindes e desejos, na sensibilidade da mãe preta, no céu ou no tempo em que continuaremos a viver ou a morrer. Após esse ligeiro diálogo, manda o menino curioso dormir, porque “quem dorme é como quem muda de roupa”. O Ano Novo, nessa visão metaforizada pelo sentimento atemporal, é o simples mudar de roupa, com os ponteiros do relógio a rodar e a levar, na sua trajetória irrefreável, o tempo.

Deve ser assim o novo ano. Quaisquer deles. Passado o tempo, o ano passou. O limite de sua existência foi o esperado badalar da meia-noite. Orações, abraços e beijos marcaram o final do ano velho e o nascimento apoteótico do novo ano. A questão a nos atormentar é: onde encontrar esse novo ano? Em nós mesmos? No colorido calendário das boas festas? Mudou-se o ano, com todas as suas alegrias e mazelas, ou apenas o tempo marcado na fatalidade ininterrupta do tempo? As dívidas se extinguiram ou permanecerão? O amor continuará o mesmo? A felicidade insiste em nos desafiar a sermos felizes? Amaremos mais ao outro, além de, egoisticamente, a nós mesmos? E a solidariedade? São indagações que nos desafiam respostas comprometedoras. Insiste-se: onde o novo que tanta se deseja? No lar, em casa, no trabalho, na arte, na cultura, na política, na justiça, no parlamento? Passamos pela meia-noite e, no dizer da mãe preta, é o Ano Novo. Não pode ser o dormir ou acordar ou o simples ato de mudar de roupa. Impõe-se vencer as dúvidas do menino curioso. Ver o Ano de 2020 atravessar – não com a fé agnóstica – a meia-noite e se fazer presente, com a sua força inovadora, entre nós, para que sejam realizados nossos sonhos e utopias de um novo tempo.

Meia-noite é tempo. Tempo de passagem. A eternidade que se move. Sem a fantasia da ilusão de que, passada a meia-noite, alcança-se a felicidade. Verdade: a meia-noite deixou para trás uma infinidade de angústias, que serão postergadas, com o advento do novo ano, à insignificância do nada. Os espumantes estouram, borbulhando, a desafiar a nossa sede de ser feliz. Os foguetes explodem. Os abraços aconchegam. A fraternidade da travessia da meia-noite exige esses gestos. Os risos suplantam as lágrimas, ainda que sejam efêmeras de alegria. É o novo tempo. Vivemo-lo na essência do advento. Mas, eis a questão: vencemos o tempo? O tempo é nada diante da euforia do novo ano, a desafiar-nos para novos desafios. Os sinos, repenicados para anunciá-lo, retumbam, sem nenhum tom de ceticidade, pois, despidos dos preconceitos e de roupa nova, estamos prontos para essas aventuras, mesmo que insensatas.

Nesses anos todos, desde 1947, quando cheguei a este mundo na casa de um carpinteiro, meu pai, velhos e novos anos se passaram. Novos e velhos Brasis se foram. Sonhos, muitos sonhos realizados e não realizados. O tempo leva e traz os nossos sonhos. O Brasil do bonde passou. Da carroça, também. O Brasil do samba-canção desapareceu. Também do bolero e o da jovem guarda e o da bossa nova. Os Brasis foram passando, vencida cada meia-noite. Novos Brasis vieram, com a epifania de um novo tempo. Envelheceram, morreram e retornaram. Vão-se e vêm sonhos, esperanças, após cada passagem da meia-noite. O que nos resta? Viver a esperança de um novo tempo. Sonhar. Construir utopias como o poeta que canta porque o instante existe e vida está completa. Sejamos alegres, com algum laivo de tristeza, para fazermos das contradições um encontro com o amor. Deixemos de lado o pessimismo do titulo desta crônica, embora o tempo novo que se aproxima esteja mais velho do que outros tempos. Façamos o rompimento do muro de todos os nossos preconceitos. Desejo a todos, amigos e inimigos, se os tiver, um ano novo, sem os rescaldos odientos do ano que se finda.

  • Membro da AML e AIL.