Coelho Neto tem uma crônica em Canteiro de Saudades, cujo título é O ano novo. O cronista narra sua perplexidade sobre essa festejada data: “Falavam tanto do Ano Novo, que eu resolvi esperar a meia-noite”. Assim iniciou a vigília da meia-noite para ver a entrada do Ano Novo. Mas decepciona-se. Embora despertado pelos brindes à mesa, beijos, abraços e bênçãos, não conseguiu enxergar com os próprios olhos a presença viva do Ano Novo. Inconformado pela impossibilidade de presenciar a auspiciosa chegada do ano, foi até a mãe preta para certificar-se da verdade, perguntando-lhe: “E o Ano Novo? Onde estaria ele?” A mãe preta lhe dá a resposta, justificando a frustração do menino: “No relógio, quando dá meia-noite, é o Ano Novo que entra. É assim.” Como a explicar a fantasia daquele menino, ainda que ouça o relógio, veja a festa, porém o Ano Novo mesmo nunca vira, para concluir, em frase definitiva, a expressar a imensidão do mundo: “O céu é um relógio grande.” Ainda assim, o Ano Novo chegou, com todos os brindes e desejos, na sensibilidade da mãe preta, no céu ou no tempo em que continuaremos a viver ou a morrer. Após esse ligeiro diálogo, manda o menino curioso dormir, porque “quem dorme é como quem muda de roupa”. O Ano Novo, nessa visão telúrica, metaforizada pelo sentimento atemporal, é o simples mudar de roupa, com os ponteiros do relógio a rodar e a levar, na sua trajetória irrefreável, o tempo.
Deve ser assim o novo ano. Passado o tempo, o ano passou. O limite de sua existência foi a meia-noite. Orações, abraços e beijos marcaram o seu final, e o nascimento apoteótico deste 2015. A questão a nos atormentar: onde encontrar 2015? Em nós mesmos? Mudou-se o ano, ou apenas o tempo marcado no tempo? As dívidas se extinguiram ou permanecerão? O amor continuará o mesmo? A felicidade insiste em nos desafiar a sermos felizes? Amaremos mais ao outro, além de a nós mesmos? E a solidariedade? São indagações que nos encaminham para respostas comprometedoras. Insiste-se: onde está o 2015? No lar, em casa, no trabalho, na arte, na cultura, na política, na justiça, no parlamento? Passamos pela meia-noite e, no dizer da mãe preta, é o Ano Novo. Não pode ser o dormir ou acordar ou o simples ato de mudar de roupa. Impõe-se o desafio de vencer as dúvidas do menino de Coelho Neto. Ver o Ano de 2015 atravessar – não com a fé da ambiguidade – a meia-noite e se fazer presente, com a sua força inovadora, entre nós. Todos gostaríamos de ver o Ano Novo ultrapassar as fronteiras da meia-noite, vencer os limites do tempo e despedir-se do Ano Velho, deixando para trás as incertezas que fizeram do falecido ano um passado a ser lembrado ou esquecido, dependendo dos fatos, das impossibilidades, bem como das alegrias ou das tristezas.
Meia-noite é tempo. Tempo de passagem. A eternidade que se move. Sem a fantasia da ilusão de que, passada a meia-noite, alcança-se a felicidade. Verdade: a meia-noite deixou para trás uma infinidade de angústias, que serão postergadas, com o advento do novo ano, à insignificância do nada. Os espumantes estouram, borbulhando, a desafiar a nossa sede de ser feliz. Os foguetes explodem. Os abraços aconchegam. A fraternidade da travessia da meia-noite exige esses gestos. Os risos suplantam as lágrimas, ainda que sejam efêmeras de alegria. É o novo tempo. Vivemo-lo na essência do advento. Mas, vencemos o tempo? O tempo é nada diante da euforia do novo ano, a desafiar-nos para novos desafios. Os sinos, repenicados para anunciá-lo, retumbam, sem nenhum tom de ceticidade, que estamos prontos para essas aventuras, mesmo que insensatas. Vamos a elas, despidos de preconceitos e com roupa nova.
Nesses anos todos, desde 1947, quando vim ao mundo na casa de um carpinteiro, no Lira, velhos e novos anos se passaram. Novos e velhos Brasis se foram. A história leva e traz os nossos sonhos. O Brasil do bonde passou. Da carroça, também, ainda que existam algumas delas por aí, teimando em viver o passado. O Brasil do samba-canção desapareceu. Do mesmo modo, o do bolero e o da jovem guarda e o da bossa nova. Os Brasis foram passando, vencida cada meia-noite. Novos Brasis vieram, com epifania de um novo tempo. Envelheceram, morreram e retornaram. Vão-se e vêm sonhos, esperanças, após a meia-noite.
Nesta meia-noite, estou ao lado de Coelho Neto. O novo ano está em nós. Retorno ao menino do cronista, perplexo, a perguntar: “E o Ano Novo? Onde estaria ele?” A resposta da mãe preta resume tudo: “Quando dá meia-noite, é o Ano Novo”. O sentido do encontro com o novo tempo e do desencontro com o tempo passado é de uma simplicidade transcendental: meia-noite. Nesse instante mágico, alcança-se o outro lado da vida. Passa-se de um momento acabado, envelhecido, para o estágio em que a perspectiva do novo nos coloca num mundo de virtudes a serem alcançadas. Esse tempo é apenas o sinal transformador dos sonhos que carregamos, ao fazermos o traslado do passado para um presente que promete ser melhor que o tempo que acaba de morrer. Eis o sentido desse chegar, transcendental e efêmero. Varamos a meia-noite para viver a essência de 2015, sem a obrigação de vê-lo na sua travessia até nós. Mas... dormir pode ser um simples mudar de roupa, ou, quem sabe, de tempo, de vida. Depende de nós mesmos. De nossas humanas circunstâncias.