1968 foi um ano mítico. O Brasil e o mundo passaram por um intenso processo de profundas mutações comportamentais, abrangendo as questões éticas, políticas e sexuais. Emergiram os movimentos ecológicos, em que as pessoas passaram a voltar-se para preservação do meio ambiente, com o fim de assegurar uma melhor qualidade de vida, e mesmo a própria sobrevivência. Vivia-se em plena guerra fria, cujo campo de batalha era o temor da deflagração de uma guerra nuclear, com força destrutiva tão intensa que, se não houvesse a aniquilação do homem da face da terra, ter-se-ia o retorno aos primórdios de uma civilização incipiente, caso restasse algum sobrevivente.
No tabuleiro da relação entre dominantes e dominados, tinha-se a guerra do Vietnã, em que os interesses intervencionistas norte-americanos se sobrepunham a qualquer diálogo. Os pequenos vietcongs enfrentavam com denodo o Golias americano, utilizando a tática da guerrilha. No final, entre milhares de mortos e feridos, os americanos tiveram que se retirar do campo de batalha, já que, dentro dos Estados Unidos, despontou uma consciência de repúdio contra a violenta intervenção deste país que bombardeava a paupérrima população vietnamita. Como ato contestatório dessas violências, surge o movimento hippie, sedimentado numa proposta pacifista, no dístico difundido no mundo inteiro: paz e amor. Ao lado da revolução política, a liberação da sexualidade. A mulher passa a ocupar o seu espaço definitivo, não mais sendo um mero apêndice da costela de Adão. A pílula lhe possibilita o exercício mais amplo dessa liberdade. O mundo todo clama e luta por mudanças radicais. O Brasil vivia o seu momento histórico mais odioso: a ditadura civil-militar, implantada, em 1964, sob o subterfúgio de combater o comunismo e sindicalismo. De fato, todos aqueles acontecimentos do ano de 1968 se diluíram dentro de nossa sociedade, e ainda em processo de mutação, razão pela qual não terminou.
O jornalista e escritor Zuenir Ventura escreveu um livro clássico - 1968: O ano que não terminou - no qual faz um relato de todos esses momentos históricos que tornaram mítico o ano de 1968. Essa obra de Zuenir é considerada um dos maiores clássicos da literatura contemporânea brasileira, porquanto elabora um retrato fiel de todos os acontecimentos que fizeram do ano de 1968 um divisor de águas na história brasileira e mundial. Além de ser uma peça de excelente jornalismo, como exemplo de texto brilhante, 1968 - O ano que não terminou presta relevante serviço à revitalização da consciência democrática brasileira. Impõe-se que a nossa juventude tenha a voracidade de, na ânsia de angariar conhecimento, fazer a leitura e releitura desse monumental trabalho realizado por esse grande jornalista.
E, a partir dessa necessária leitura, é possível pensar-se, que, do mesmo modo, numa extensão dos acontecimentos históricos, o ano de 1984 não acabou. Reflitamos: em 1964, deu-se a deflagração do golpe civil-militar. Quatro anos depois, em 1968, o mundo lutava e dava a própria vida, como ocorreu com Martin Luther King, assassinado em Memphis, em 4 de abril, para conquistar as liberdades públicas e garantir a igualdade de direitos. Nesse caminhar, avançou-se muito. Mas ainda falta - também muito -, porque, na medida em que se avança, há o retrocesso. Tensiona-se o conflito entre o detentor do poder político e econômico, que em nada cede, e aqueles que lutam pela sobrevivência. É a eterna luta de classe, que integra o DNA de toda sociedade.
1984 se caracterizou no Brasil por um dos maiores movimentos cívicos de nossa história: a luta da cidadania pelas eleições para presidência da República: as Diretas Já. Dante de Oliveira, eleito deputado federal em 1982, pelo PMDB, assume o mandato em 1º de janeiro de 1983, e começa a coletar assinaturas para apresentar o projeto de emenda constitucional, que restabeleceria eleições diretas. Consegue as assinaturas e, no dia 2 de maio de 1983, apresenta ao Congresso a proposta de Emenda Constitucional n.° 5. Daí em diante, enraíza-se na consciência política brasileira, tendo à frente o timoneiro Ulysses Guimarães, todo o anseio cívico do povo para eleger, em sufrágio direto, o candidato a presidência da República. O movimento das diretas quebrou o colégio eleitoral e contribuiu fortemente para o esvaziamento do regime ditatorial civil-militar, ainda que com o aproveitamento dos oportunistas de sempre, que, como ratos, abandonaram o barco dos generais.
O ano de 1984 continua vivo. Bem vivo. Não terminou. Estamos há um ano do golpe civil-midiático, denominado impeachment. Derrubou-se uma presidenta honesta, que nunca afanou um só alfinete do Palácio do Planalto, sob o falso argumento de pedaladas, e colocou-se em seu lugar um traidor, que não recebeu um mísero voto, e que, segundo a Polícia Federal, que integra o seu desgoverno, é o chefe supremo de uma quadrilha, onde um dos seus componentes, dileto amigo de falcatruas, armazena num bunker, como se fosse um Ali Babá moderno, mais de 50 milhões de dinheiro vivíssimo. A turma que se vestiu de verde e amarelo, financiada pela Avenida Paulista, deveria agora vestir-se de preto, numa demonstração senão de vergonha, ao menos de frustração. E ainda: se sobrar algum sentimento, sair gritando, para redimir-se do grave erro: - Diretas já!
* Membro da AML e AIL.
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