José de Maria era filho de Maximiano de Adesilha e de Maria de Aurora. Era conhecido por Z? DE MARIA ou Z? DE ORORA. Morava com a sua família, em terras de Vai-Quem-Gosta, uma “geba” encravada naquela fim de mundo, perto das terras do Vai-Quem-Quer, do respeitado decano “seu Alípio”, de saudosa memória. Zé de Maria (ou Zé de Orora) era um negrote forte, disposto e trabalhador. Seus irmãos Bonifácio, Agnelo e João de Maria moravam na cidade (na capital) e trabalhavam na estiva marítima. Então desde cedo Zé já trilhava pela cidade em ida e volta, sem perder de vista o caminho de casa, o sítio frutífero de sua velha MARIA DIORORA. E assim Zé de Maria foi “servir nos quartel”, isto é, sentar praça no Exército, que era como diziam.
Contou-me Zé de um acerta feita, quando trabalhávamos em corte de arroz na roça de meu pai, que “os homens” queriam que ele engajasse no quartel, mas que para não perder a tradicional “Festa da Conceição”, que todos os anos se realiza naquele nosso lugar, preferiu então dar baixa. - Porra Zé, deixou o quartel para vir se enfiar na roça? Perguntei-lhe renegando sua atitude. - Pois é, ali tem muita lei, muita “caxiagem”, muita ordem, “sim sinhô, não sinhô, quero morrer” e eu não poderia ver os velhos (os pais), quando quisesse. Depois disso. E a festa da Conceição? Foi como me respondeu. Hoje, interpretando aquele Zé de Maria, vejo que aonde ele chegava queria aparecer. “Era o tal”. Inclusive pela fama de que tinha servido ao Exército. Então, ele “encarcava” uma pinga e só falava da vida, do dia-a-dia e dos afazeres das atividades no quartel. E, naquilo, Zé era o maior. Zé-de-Maria era o cara! Usou farda, pegou em arma! Serviu no quartel!
Naquelas terras, em que o grande povão era quase tudo analfabeto, ou até no máximo a cartilha... ou primeiro ano da escola, Zé de Maria era mais um, pelo meio. ?quele tempo, eu cursava algo como a segunda série ginasial, estava aos doze anos de idade e estando nós dois no mesmo eito de serviço, Zé, ex-soldado do quartel, precisava sobrepor-se, manter a pose, continuar por cima e então resolveu pôr a mim em dificuldade, me “encalacrar”, me “por no bolso”, que era como diziam por ali. E então lançou-me uma charada que no fundo era uma questão matemática.
Disse Zé: “Umas rolinhas estavam sentadas na copa de uma árvore, quando ali pousou um baita de um gavião, morto de fome, querendo comer elas. Então o gavião, dando uma de gentil e educado, disse: ‘bom dia minhas cem pombas’, ao que as pombas responderam: ‘sem pombas não somos nós; porém com outro tanto de nós, com mais a quarta de nós e com mais ti, meu gavião, aí sim, cem pombas seremos nós’. E voaram deixando o gavião falando sozinho”. E desafiando a minha segunda série do ginásio, ele me perguntava: Quantas pombas tinham na copa da árvore?
Zé, se queria me encalacrar, de fato me encalacrou. Não tive ali, em pleno trabalho de corte de arroz, debaixo de sol quente, como lhe responder à inusitada questão matemática com gosto de charada. E Zé de Maria fez silêncio sobre a resposta. E a vida continuou... e só mais tarde, quando eu contava a mesma charada a colegas meus, vi que aquilo era uma questão de solução fácil, uma equação de primeiro grau, simplista e fácil. E guardei na mente para dar a resposta a Zé de Maria, na primeira oportunidade.

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Zé de Maria era “pau de dar em doido”, bom de serviço. Juntou-se a ROMUALDO, um rapaz negrote, do mesmo “top” de Zé, seu vizinho, filho de dona Moça, neto da velha Auta, esta mãe de João de Auta, gente de mãe-Carolina, um povo que teve um pé na escravatura, como eles mesmo diziam. A dupla Z? DE MARIA e ROMUALDO era imbatível em serviços de roça. Empreitavam juntos, trabalhavam juntos, viviam juntos. Onde estava um estava o outro. Respeitavam-se e eram respeitados. Um dia, por causa de uma “besteira”, tiveram um desentendimento. E Z? DE MARIA, o ex-soldado que não era de perder pra ninguém, ligeiro-ligeiro, deu uma cabeçada e jogou ROMUALDO ao chão. E montou por cima e bateu até “amolecer os dentes”. Foi um nocaute! Depois “se pabulava” e dizia que “só dormindo” perderia uma briga para Romualdo.
Aquela taca sofrida, o Zé montado por cima, as escoriações, o corpo doído, os “dentes moles” e o zum-zum-zum do povo, tomaram conta da alma e do juízo de Romualdo. Aquele chão não lhe era mais o mesmo. Ele não encarava mais as pessoas, vivia enfurnado, precisava dar o troco. E como Zé de Maria, continuou morando na casa de Dona Moça, mãe de Romualdo, este mudou-se para ali mais adiante. E, em jejum, ingeria limão com pólvora para manter o sentimento de coragem, o ódio vivo ao inimigo.
E foi tangido pelo amargo do limão com pólvora, ainda no amanhecer, foi bater na casa de Dona Moça, com sua faca pontiaguda e amolada. Zé de Maria estava deitado, naquela “madorma” (sonolento). E Romualdo só teve tempo de dizer “levanta Zé e vamos pra outra”. E quando Zé de Maria punha as mãos à beira da rede, para levantar-se, foi recebido com uma facada à altura do braço direito. Perdeu o sangue e as forças; pegou o caminho da cidade, mas ficou em parte, inutilizado para sempre. E Romualdo “capou o gato” e homiziou-em em terras de Penalva. Romualdo continuava perdendo, sentia-se foragido. Meses depois voltou com revólver e faca na cintura, pronto par encarar Zé de Maria. Um dia encontraram-se num velório, cada qual para o seu lado, cada qual mais odiento e odiado e Romualdo pronto para matar o ex-amigo. E Zé de Maria bufando como um selvagem, não pisava ao chão. Mas, enfim... ficou só nisso.
Mais tarde, quando fui levar a resposta-matemática da charada do gavião para Z? DE MARIA, este me contava com um treiteiro e fingido sorriso no rosto o seu desejo de “acertar as contas” com ROMUALDO. E dez anos depois, quando me encontrei com ROMUALDO, este me dizia que foi com Zé de Maria e com sua vivência de caserna que aprendeu a ingerir limão com pólvora para ter coragem, para odiar. E me dizia que se não desse o troco não descansaria, nunca.
A esse meio tempo eu relembrava aquele sorriso fabricado, maroto e ameaçador de Zé de Maria, e o limão pólvora de Romualdo. E todo o mundo na treita, assim como aquele treiteiro gavião: “... bom dia minhas cem pombas...” e o som do negativo e da revoada: “cem pombas não somos nós...”.

* Viegas é o olhar do pássaro sobre o galho.
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