Já escrevi várias publicações sobre Zé Bicudo - um sujeito que "virava labisonho". Nunca recorri nem plagiei qualquer dos textos. É que Zé Bicudo, desde a minha mais tenra infância, sempre despertou os meus medos, os meus caminhos e o meu imaginário. Moleque, eu ouvia contar histórias mirabolantes e aterradoras de Zé Bicudo; histórias que se renovaram e se repetiram por tantos anos e mais anos. Até que o sujeito, finalmente, morreu, algo com cento e poucos anos.
Zé de Fosta ou Zé da Gorda eram codinomes aceitáveis por ele. Seu Zé era como ele gostava de ser chamado. Mas se o chamassem de ZÉ BICUDO, aí o tempo fechava, a desgraça estava feita, podia preparar que a maldição viria "como sem falta". Naquele sertão em que poucos tinham um rádio; ninguém conhecia uma televisão nem por ouvir dizer; luz elétrica só chegou quando Zé de Fosta tinha seus setenta e poucos, então ZÉ BICUDO era o prato asqueroso e repugnante de boca em boca. "Ave-Maia-Cruz-credo"!
E "todo o mundo dizia por uma boca só" que Zé Bicudo virava porco. Virava "labisonho" nas noites de sexta-feira. Cercava gente. Botava gente pra correr. Aterrorizava. E nesse jornal-diuturno, Zé Bicudo era visto como "um atentado", um endiabrado. Mais tarde, quando Zé Bicudo já estava garantido em seu "fado", não era preciso mais esperar sextas-feiras nem noites de lua. Virava mesmo era quase todo o "santo dia". Quer dizer: toda santa noite.
Seu ponto predileto era ali, naquela "encruza", uma espécie de bifurcação em "Y" em terras do Carro Virô - hoje dos herdeiros do meu pai - debaixo de um soturno e tétrico mangal ali existente. Justo ali onde Jona da Mangueira certa noite foi aterrorizada pelo velho labisonho. Contava Joana - e isso eu ouvi numa "panha de arroz", na roça do meu pai - que, num começo de noite, Zé de Fosta passou por ali, assim meio que encostando, querendo namoro com aquela despachadona e verbo livre Joana da Mangueira. Joana não gostou da insinuação daquele endiabrado e abriu o bico: "Olha lá Zé Bicudo, tu não vai virar porco por aí". Ah"! Pra quê? Zé de Fosta saiu fumaçando, dando coice na sombra.
Daí a pouco, quando Joana menos esperou, o que viu foi uma ventania enlouquecedora e um bicho fuçando, roncando querendo botar a casa de Joana ao chão. Joana, solteirona e sozinha que era, entendeu a vingança e abriu o berreiro: "Eu sei que é tu, Zé Bicudo". Aterrorizada, Joana gritava nas alturas. Em vão. E Joana, sem saída, ficou sitiada em sua própria casa, dominada pelo medo e pelo desespero. No dia seguinte, Joana da Mangueira, despachada e namoradeira, deixou para sempre a sua morada à beira do mangal onde Zé Bicudo costumava aterrorizar com o seu "fado".
A uma distância de mais de uma légua, lá na beira do campo morava Natóro. Natóro tinha também a fama de virar porco, virar "curaganca", embora não fosse um personagem recorrente ali pelas bandas daquele mangal. Então Zé Bicudo andava quilômetros na noite para afrontar e se defrontar com Natóro. E, virados "labisonho", Zé Bicudo e Natóro brigavam na noite, no puro dente, na "presa", que era com diziam.
Sempre que vou ao meu chão de origem, procuro lembrar nomes, lugares, passagem, pessoas, prosa e fatos antigos. Zé Bicudo é sempre o meu tema recorrente. Vejo que os  jovens quase nada sabem a seu respeito. Um deles, porém, me contou uma passagem:  disse que numa conversa segura com o velho feiticeiro e mostrando-lhe suposto interesse em aprender sua arte diabólica, Zé Bicudo, abriu-se em algumas falas, disse que roeu osso no verão com sua avó, no campo distante (no têso) nas noites de lua. Mas deixou à vontade o jovem aspirante para decidir se queria ou não aprender o ofício de virar "labisonho"! O jovem recuou e o velho feiticeiro não insistiu. Disse.
Ele mesmo também contou que assistiu ao vivo uma "parada" de Zé Bicudo. Contou que era fim de tarde, quando bebericavam numa bodega e Zé Bicudo ali pelo meio. A certa altura chega um rapaz, morador pouco ali mais adiante, metido a garimpeiro. Viu Zé Bicudo, chegou fobando, revólver na cintura e emborcando pinga. A certa altura, o garimpeiro bota o revólver sobre o balcão e joga uma indireta: disse que não tinha medo de visagem e tinha seis balas para o primeiro labisonho que passasse na sua frente. E a pinga rolando e Zé Bicudo ali, na dele, calado, mas amuado, enraivado.
Quando o dublê de garimpeiro mal deu as costas, Zé Bicudo saiu ao terreiro e soltou um grito qual um uivo canino. O rapaz que me contava a história reproduzia o eco com originalidade. Era como se a gente estivesse vendo a cena e ouvindo o áudio. E o resultado dessa ópera é que o sujeito perdeu-se no caminho de casa, perdeu o revólver e chegou em casa pelos braços dos outros, todo mijado e "obrado", de tão desnorteado e adoidado que se encontrava.
Abro aqui um parêntese para explicar que naqueles confins de sertão, a palavra "CANALHA" não tem o significado atribuído ao mesmo termo, aqui no asfalto. Lá, "canalha", num sentido bem humorado quer dizer: pequena multidão, coletivo de gente, grupo de pessoas jogando versa fora em bebericos de butiquim.
Pois bem. Numa outra ocasião, quando Zé Bicudo já era um veterano encaniçado e quase aposentando na arte de virar "labisonho", a "canalha", estava ali na bodega de Amaro contando lorotas, falando nas alturas, emborcando pinga. E Zé Bicudo ali pelo meio. Deixa que neguinhos uns e outros estavam doidinhos para provocar o velho, para despertar o seu instinto "labisonho" e para ver o circo pegar fogo. E Zé Bicudo já com umas quatro na testa. Vai um deles e cutuca o diabo com vara curta: aposto contigo Zé Bicudo que tu não sabe virar porco, coisa nenhuma. Ah, pra quê! E Zé Bicudo não perdeu tempo e com a sua voz afetada foi se esgueirando... se esgueirando... e como num passe de mágica "o sujeito ia se transformando". Aí foi uma gritaria, um corre-corre, o "coro arrupiado" e a "canalha"  gritando "deixo disso... deixo disso". Foi como Zé Bicudo aos poucos foi voltando a ser gente.

* Viegas questiona o social.