(e o medo de perder)
Ainda na minha infância, lá naquele meu pequeno chão das minhas lembranças e saudades, vi a distância, nas festas de terreiro, um jogo de azar, ali conhecido como JOGO DE CAIPIRA. Sob o copo rolava um dado e na mesa um pano com a marcação quadriculada de um a seis. E a designação dos números, tanto no dado quanto na mesa, eram: az, duque, terno, quadra, quina e sena. Aquela jogatina marota em noite adentro nos terreiros de festas atraía os “jogadores” e outros viciados. E a jogatina, geralmente, só dava para o banqueiro – era o quanto eu me permitia imaginar.
O meu pai “não podia nem sonhar” – como ele mesmo dizia – que um filho seu sequer se aproximasse de uma banca de JOGO DE CAIPIRA. Acho que era aquela velada proibição do meu velho pai e o risco de uma surra pela desobediência que me despertava interesse e tentação pelo JOGO DE CAIPIRA. Mas, ainda assim, mesmo que tentado não era de me arriscar. Pois o experimento implicava na marca do sangue à ponta do cinto; disso eu já sabia. E só mais tarde, já dono do meu nariz, porém, numa fantasia que guardava de infância, fui bater com os costados no JOGO DE CAIPIRA, longe, muito longe daquele meu velho, mas ainda assim me sentindo às escondidas para evitar-lhe a frustração e o desrespeito.
ZÉ PIRRÓ era o maior bancador de jogo de caipira, naquele meio de mundo em tantos roceiros. PIRRÓ era um sujeito magricela, franzino, mas esperto, ladino e bom de prosa. Durante o jogo, volta e meia, ele batia a mão sobre o bolso, “fobava” (fazia firula) e esnobava dinheiro para pagar aos ganhadores do seu JOGO DE CAIPIRA. Nadinha! Puro blefe, coisa de um jogador! E lá pelas nove, “nove e tanta” da noite, quando o jogo estava no seu pico, muita gente ao redor, muitos palpites e dinheirinhos espalhados em aposta sobre o pano, PIRRÓ, soltava um relaxo, exortando ao jogo: “DE AZ A SENA/ DE SENA ABAIXO / rapariga que se preza/ NÃO DESPREZA O SEU MACHO – milho bota pendão e bananeira bota cacho. E pode vir rapaziada/ Que o resultado tá embaixo”.
Era o desafio. A provocação. O ambiente para o jogo estava propício e ZÉ PIRRÓ deitando e rolando. Ora perdendo; a maior parte ganhando. Nesse ambiente insuflado e nervoso, uns e outros soltavam um relaxo e costumavam dizer: “A VONTADE DE GANHAR TIRA O MEDO DE PERDER”. PIRRÓ sabia que aquele ditério desestimulava suas vítimas, então PIRRÓ retrucava: “Quem não arrisca não petisca”. Depois ia pra cima... “Pois é/Mané/Quem não dá do seu / Não come do alheio”. E balançava o dado sobre o copo e mudava de dado e mudava de copo. E as pessoas volta e meia diziam: “Só parece que esse PIRRÓ é empautado com o cão”. E PIRRÓ respondia na bucha e na boa: “Negócio é negócio e jogo é jogo. Se ganhar leva com certeza / mas se perder deixa em cima da mesa”. E assim o JOGO DE CAIPIRA “apanhava” (corria) nas festas de terreiro “até as tantas”, quer dizer? Até tarde da noite.
Faz anos, quando voltei ao meu lugar, exclusivo para uma “BOIADA” (festa de bumba-boi) a que fui convidado, ainda era cedo da noite quando fui chegando. E quem vejo? PIRRÓ com a sua ainda solitária banca de JOGO DE CAIPIRA. Aí eu pensei: hoje é o meu dia! Voltado para o social, fiz mil perguntas ao PIRRÓ sobre a sua jogatina: ganhos, perdas, realidade, o lado amargo. E PIRRÓ sintetizou os tantos anos do seu jogo de azar: “isto aqui é uma ilusão”...
Já amistosos fui fazer uma fezinha. Dono do meu nariz e do meu próprio dinheirinho mas... ainda assim... sentido e temeroso, porque traía uma velha lição do meu velho pai. Mas como A VONTADE DE GANHAR TIRA O MEDO DE PERDER, quando dei por mim estava jogando. Ganhei uma, ganhei duas, ganhei três, ganhei quatro “tudo encarreado”, como se diz ali, e fui ficando com pena do PIRRÓ. Pensei em devolver-lhe o dinheiro ganhado, mas preferia perder no jogo. Empatar. De repente eu estava com um drama de consciência; ora nas lembranças das lições ao rigor do meu pai, ora por estar ganhando naquela “ilusão”. E, quando dei por mim, fui perdendo... perdendo. Perdi o que ganhei e perdi mais ainda. Fiquei intrigado, chateado – porque bem ali não ouvi a lição do meu velho pai; porque o jogo atenta contra os meus princípios e... porque... A VONTADE DE GANHAR TIRA O MEDO DE PERDER.
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Essa semana pude ver um Promotor de Justiça do Estado do Tocantins “envenenado” com uma máfia que por ali ocorre. Máfia de Prefeitura! Credo em cruz! Ele referia-se a um pequeno município da jurisdição em que atua e com os dedos indicadores e polegar em círculo, mostrava o pequeno tamanho do município esbulhado, para exibir a pobreza de meios e a dilapidação atroz e voraz dos que montaram nos cofres da burra. Essa coisa chamada “prefeitura” e uma meia dúzia que galopam nessa burra e fazem a “máfia”. Que máfia, aliás, é ponto comum do erário público. E o processo está rolando. E um dia, quem sabe, mafiosos darão com a boca no arame da Justiça ou com a cara na parede dessa mesma justiça. Mas é como no jogo de Zé PIRRÓ – “A VONTADE DE GANHAR, tira o medo de perder”.
Essa semana por aqui vim a saber que “operadores do direito” e companhia limitada também estariam na máfia e na chave do sol quadrado. E não é máfia de prefeitura que isso aí é ponto-comum, é dia-a-dia. É máfia de DPVAT – das indenizações por acidentes ou supostos acidentes de trânsito. Fico vendo... operadores do direito... Mas é como no jogo de ZÉ PIRRÓ: “a VONTADE GANHAR, TIRA O MEDO DE PERDER” – que essa vida cá no chão, na conta da realidade também soma “...uma ilusão”. E nisso PIRRÓ tinha razão.
* Viegas é advogado e questiona o social. E-mail: viegas. adv@ig.com.br
Edição Nº 14789
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