É meio dia deste 24 de dezembro. A muitas léguas de distância pôde-se ouvir a girândola - doze dúzias de foguetes explodirem no espaço! Foi um eco estrondoso, barulhento e incomum que "Mãe Carolina" - preta velha, mãe, avó, bisavó e tetravó de gerações de negros retintos, todos criados e a costumados ali na beira, ela mesma que diz que "ainda pegou uma pontinha da escravidão", sofreu um susto danado e depois, aliviada, exclamando, comentou:
- Meu filho intonsi qui eu pensava/ qui aquilo era o canhão do Imperadô!!! Pensava qui era ao mundo qui tava se acabano!!! Pensava qui era outra guerra di novo!!! Avi-Maria-cruz-credo. Creim-Deus-pade-avi-Maria. E benzia-se. E encruzava-se. E respirava ofegante. Exasperada.
Depois ela mesma:
- Mais intonse qui quando arricobrei as idéia, qui me lembrei qui aquilo era o toque o "mê-guia", da festa da Bacha da Folha; intonsi qui até me deu um frio no coração. Gulóra a Deus nosso sinhô, meu pai. E respirava profundo, aliviada.
Realmente, todos sabem ali naquelas capembas de sertão que o toque do foguete é um chamatório para o festejo. Então, o dono da festa, à véspera, manda tocar esparsos foguetes por umas quatro ou cinco vezes ao dia, sendo que ao meio dia isso é tiro-e-queda, não pode faltar. Quem ouvir e onde ouvir, sabe que ali tem festa; sabe que aquilo é aviso da festa. É a propaganda, a "mídia" dos nossos dias. E tem mais: quanto maior o foguetório da véspera ou do dia, maior o poder de anúncio, de comunicação, da festa. E a certeza de que a festança promete. E desperta no ouvinte a ansiedade pela festa. É... isso é...
Verdade, verdadeira! Seu Mané Folhá estava fazendo uma festa de promessa pra Sinhô São Binidito naquela Noite de Natal e fazia questão de que o seu festejo fosse o "primeiro sem segundo". E mandou fazer um bruto barracão de palha e chão batido que empreitou com Ambrósio por dezoito contos de réis. Uma fortuna! Foram 125 feixes de pindoba; 27 dias de serviço, cinco homens na diária, muita boia e muita cachaça.
Ambrósio, uma lapa de negro, estava encaseirado com Julhana, filha do velho Mané Folhá, mesmo sabendo que Chico Costa, um safadão que veio da beira-do-campo, cunhado de Julhana, também tava comendo pelas beiradas. E os dois ali, se roendo mas comendo do mesmo prato. Bobóso, como era e ainda é conhecido, um famoso "emborcadô de copo", depois de um gole da marvada, cuspindo ao chão, deu uma palavra de honra: "Aqui eu te ganhei, aqui eu te deixo todinho." Ele mesmo: "Bobóso nunca viu fazê dinhêro... huummm..." E com aquele asco forte de cachaça sertaneja que veio do engenho do Cipó de Mundóca, Bobóso deita o verso que é um refrão:
- Canina jiribita / espingarda de cartucho /Tu dá comigo na terra eu dô contigo no bucho.
Aí um parceiro de serviço, Anjo Estrela, "estralando pindova" do outro lado, fumando um porronca, emenda outro gole, não deixa Bobóso sem resposta e faz o repique:
- A cana não é mais cana / A cana virô bagaço / Impurro cana prô bucho e mostro que eu sou macho.
**********************
Baixa da Folha tornou-se o epicentro das atenções de toda aquela região. Cinco léguas, seis léguas em volta e a festa da Baixa da Folha era o assunto e a conversa de boca em boca. No pilão socando arroz, nos lanços de cerca talo-por-talo, no eito da coivara; debaixo do mangal; na pescaria da Laje ou da Canarana, na casa-de-farinha, no banco-de-lavar-roupa, na beira do poço, no paiol ventejando o milho, no tijupá à beira da cerca, na boia do meio dia, no mato tirando palmito, na mancepa de quebrar coco ou "adonde" quer que fosse, todo o mundo só pensava e só falava naquela festa, naquele noite. Noite de Natal.
Todos queriam apresentar-se "melhorzinho", vestido nos panos, na roupa-boa e sentir a sensação do Natal. Natal sem coloridos, sem cartão, sem o sino da igreja. Natal sem o corre-corre dos presentes. Sem essa de Papai Noel ou amigo invisível. Natal bem ali sem a recordação ingrata do eito ruim da capina. Natal sem a preocupação com a falta de farinha. Natal esturricado pela sequidão que fazia o povo "raspar" água barrenta do fundo do poço. Mas ainda assim, a grande festa que lembra a vinda do Redentor da Humanidade.
- Gulória a Deus, nosso Sinhô !!! - como no dizer de Mãe Carolina.
(CONTINUA NA PRÓXIMA EDIÇÃO)
* Viegas questiona o social.
Comentários