Mariano era filho de Mundico. Mundico do Sertão era um homem cético, firme, radical, intransigente, inquebrantável. Dono de léguas de terras que enlaçou quilombolas e outros posseiros de uma vida em ocupação. Mundico não era de fazer concessões. Ao primeiro que tentou turbá-lo em suas terras, Mundico puxou as armas. Contornou-se a situação e Mundico reinou impávido em sua sesmaria, ainda que com inevitáveis e calejados moradores aqui e ali.
Mundico, afora o senhorio às suas terras, era um lavrador convicto; homem voltado para o seu tempo, ao seu alcance. Com maestria e aptidão, sabia ler, escrever e fazer contas e conversa franca, verbo vivo. Voz de locutor-padrão. Mundico era mestre na sua escola e no ofício de ensinar a ler e escrever. Era o tempo que em que as pessoas selavam seus tratos e compromissos ao torcer do bigode. Mundico não usava bigode, mas a sua palavra tinha força de lei, de um ditado firme, garantido, irrevogável. Era assim MUNDICO DO SERTÃO - homem feito a ferro e fogo. Retidão e caráter. Honra a toda prova.
E assim MUNDICO criou os seus filhos com a mesma têmpera, impondo-lhe os seus valores, a sua lição. Em meio aos seus filhos estava MARIANO. Logo, MARIANO DE MUNDICO. Mariano, ainda que absorvendo a linhagem de severidade do pai, era, contudo, um jovem que se ressentia de debilidades físicas, de vez que contraíra, ainda jovem, moléstias que lhe afetaram o físico e o seu id psicológico. Falava baixo, andava devagar; vivia no lar paterno, mourejava sozinho.
Mariano não era festeiro, não fumava, não bebia, não tinha vícios mas... como ninguém é de ferro, aventurava-se volta e meia a espectar uma festança por aqueles arraiás, sempre de posse de uma boa lanterna que utilizava como "arma" de companhia nas noites em caminhos soturnos ao rumo do fuzuê. Aliás essa era a sua marca. Afora isso, só uns bombons de hortelã para salivar na noite de pândega e um pequeno mercado de cravo da índia que fazia o charme do hálito saudável nas noitadas festeiras.
Por conta da sua saúde precária; surdez, debilidade física e psicológica e do seu restrito universo social, vicinal e familiar, Mariano era um homem solitário mas, no fundo e no raso, como qualquer cristão, tinha lá suas carências e intenções de acasalamento. E nessa senda de um quase abandono tornou-se quiçá sem que ninguém jamais imaginasse um lobo solitário à procura ou à espreita da outra banda da laranja que se lhe pudesse suportar e superar suas deficiências materiais nas lides afetivas.
Mas eis que nos casuais e pelos desvarios da vida, aponta-lhe em seu caminho uma jovem de simpatia transbordante, avassaladora, agradável, leveza em pessoa. Era BRÍGIDA, uma garota interiorana mas criada e vivida na cidade. "Empregada de branco", como se dizia por lá. E ali naquele interior-brejeiro de Mariano estava só de passagem. Uma turista em carne e osso dando de ombros àquela vidinha sem luz e sem TV. Mariano vislumbrou naquela moçoila uma princesa e, demais disso, quem sabe, a banda da sua laranja. E, de devaneios esses, quem sabe, a mãe dos seus filhos; a meeira dos seus bens por conseguir.
BRÍGIDA não se fez de rogada. Papo vai, papo vem e quando deram por si, engataram um namoro. Era, na cabeça de MARIANO, tudo o que ele queria mas... talvez e certamente nem tanto assim na retina daquela gata. Brígida, afinal, era um moça acostumada aos avanços da vida na cidade deveria ter mais hora de cama dos que os desenganados do Socorrão. Enquanto isso, Mariano era todo sonhos, fantasias, vãs aspirações. Tudo em puras elucubrações que a sua mente de um jovem apaixonado poderia idealizar.
Mariano no interior e Brígida na capital, num tempo em que o chão de Mariano sequer sonhava-se com luz elétrica - telefone era coisa de poucos. Então o caminho mais curto era a CARTA. E nisso Mariano era bom! Tirava de letra! Tinha tempo, disposição e os pendores adquiridos na escola do seu velho MUNDICO DO SERTÃO. E haja derramar a modéstia em suas "mal-traçadas" linhas, a inspiração de um jovem apaixonado cheio de ternura, de sonhos, planos e emoções. Afinal, Mariano levara o namoro a sério. E, óbvio, pensava em casar-se. E carta vai e carta vem; e carta vai e carta vem e a flor roxa daquele amor só desabrochava cada vez mais nos sentimentos de MARIANO.
Naquele chão tem um ditério que diz que "contador é matador". E então o que aconteceu? Virisso de Norato, língua solta, de passagem certa noite, ali pelas bandas da morada de Brígida, onde esta era "empregada de branco", sabendo daquele enlace, estupefato, viu-a de amores, entregue, em corpo e alma. Em plena praça. Virisso não se aguentou e... tim-tim por tim-tim nos ouvidos de Mariano. Ah pra que?! Mariano, então, na calma que se lhe era peculiar, no silêncio do seu feitio e na solidão do seu viver, de imediato pôs um endiabrado plano na mente. Tinha que lavar a honra ferida, magoada, ofendida pela desdita daquela "adúltera" e indigna; daquela víbora traiçoeira e covarde.
E então Mariano, um homem definido que aprendeu o ofício de técnico em rádio e TV por correspondência, pôs-se a preparar um belo chicote em couro cru. Fê-lo bem feito, com todo cuidado. Precisava dar uma resposta e um exemplo àquela a quem um dia sonhou desposá-la. E aos trancos e barrancos, foi bater na capital. Lá, no dia e hora e local premeditados, foi destemido e determinado em surpreender aquela "cachorra". E foi o que aconteceu! Lá ao chegar, ainda que com os olhos embaçados e fumegantes de ódio e sentimento de vingança, MARIANO, em plena praça, pôde ver BRÍGIDA nos braços de outro. Desembainhou o chicote e... sem chance de defesa tome uma... tome duas... tome três... e tome mais. E o resumo da ópera é que hoje Brígida é casada com o seu conivente com quem estava na praça e MARIANO é casado com uma filha do delator, Virisso de Norato. São os retratos de vida - que fazem estes... CAMINHOS POR ONDE ANDEI.
* Viegas questiona o social.
Edição Nº 14967
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