Jerônimo de Joana era o que na minha terra, naquele tempo, chamava-se de “preto”. Um adjetivo pela cor da pele. Hoje, com os novos ventos, chamar de “preto” é ofensa moral. Então, Jerônimo de Joana é um “afro-descendente”. E é. Filho de JONA DE GI, neto de “mãe-Carolina”, esta que com o seu vozerio arrastado, tom nasal, sotaque forte, jactanciava-se ao dizer que “ainda peguei uma pontinha da escravatura”. Então, Jerônimo de Joana é um legítimo afro-descendente.
Jerônimo era um crioulo de meia-idade, analfabeto e roceiro como todos ali, em meio à sua parentalha. “Presepeiro”, tirava prosa a partir dos seus e daí em diante fazia humor e presepadas de tudo o quanto via pela frente. Assim, portanto, além de um legítimo afrodescendente, era também um humorista nato “sem tirar e sem botar”, como na linguagem daquela gente.
Eu tinha algo como 12 anos, fim do primeiro ano do ginásio, e quando cheguei de férias-escolares naquela nossa casa estiorada nas encravas do meio do mato e fim do mundo, encontrei alguns trabalhadores de meu pai, arranchados em nossa casa. Durante o dia trabalhava na roça ao preço de um quilo de carne por dia de serviço e à noite faziam a “senzala” no nosso mocambo. Jerônimo estava entre os demais. Durante a noite, cada qual em sua rede, lamparina apagada, Jerônimo contava bravatas de Lampião e Maria Bonita e seu bando de cangaceiros. Tornei-me, então, via de Jerônimo de Joana, interessado no lendário cangaceiro Lampião, o capitão Virgulino, justiceiro do sertão, tema recorrente das toadas do meu velho Luis LUA.
Contava Jerônimo que de uma certa feita, Lampião e seu bando encontraram-se com um solitário inimigo numa estrada deserta. O inimigo pulou para dentro de uma casa abandonada, e ali, de sua trincheira, “em horas esquecidas” e fogo cerrado, trocou chumbo com Lampião. A certa altura do combate, Lampião num grito determinou o cessar-fogo. E chamou o sujeito para o meio do tempo. O cabra veio, olho no olho. E Lampião decretou: Você não pode morrer; você tem que tirar semente. E a partir de hoje, pode dormir no meio do caminho que de minha parte ninguém mexe com você. E o solitário enfrentante declarou ousado: “Comigo é como você quiser, capitão”. E quando ambos se despediam, o sujeito lembrou-se da inimizade de Virgulino com um amigo seu e retrucou: Venha cá Lampião, Fulano de Tal é meu amigo e vocês são inimigos e se você puxar as armas para ele também está puxando para mim. No que Lampião foi mais adiante: “diga para ele que pode dormir sossegado”.
Jerônimo, “treiteiro” todo, contava estórias e eu ali na oitiva me deliciava com aquele guerrilheiro Virgulino, e com aquele sertanejo, meu vizinho. Depois variava para as lendas de Padim Padre Cícero e finalizava, na pura cachola, analfabeto que era, com romances de Donzela Teoroda, Zé Pretinho, Cego Aderaldo e outras tiradas das leituras do cordel de um tempo. Numa réplica, Jerônimo recitava um verso entre dois violeiros que dizia “Não há quem lhe cuspa pra cima/; que não lhe caia na cara / quem a paca cara compra /Paca cara, pagará”. E ouvíamos a Jerônimo quando este, “lá pelas tantas”, encerrava a prosa: “boa noite / com Deus passemo a noite/ com Deus amenhicemo”.
Jerônimo de Joana, para a linguagem do povo ali, era “cheio de presepadas”, para mim, ainda molecote, como até hoje, era um artista do improviso, um cara que eu admirava. Jerônimo era, enfim, esse humorista nato. Em meio a tantas “presepadas” em que se metia, Jerônimo também estava nesta: ninguém sabe por que sim nem por que não, um “desinfeliz” veado-mateiro resolveu dar com os costados naquelas bandas. Outro mateiro-caçador o descobriu, mas não deu conta da caçada. Chamou seus parceiros e o que veio foi meio mundo de gente e cachorros e espingardas – tudo à caça do “desinfeliz” veado-mateiro.
E lá se vai um pedaço do dia, outro tanto da noite e mais um dia inteiro na “pressiga”, até o que o veado já ferido, baleado, cansado, estropiado, mais morto do que vivo, caiu resfolegado à beira da estrada. Jerônimo de Joana, que não participava da caçada, passava ao caminho quando deu com o “becho”, ali à beira da passagem, tão só com os olhos abertos. Jerônimo foi lá, puxou o facão e “esmagalhou” a cabeça do veado. E pousou de herói e “brojou” (vangloriou-se) o tempo inteiro e claro: ganhou o seu quinhão tanto quanto aquele exército da pressiga!!!
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Tantos anos se passaram e quando voltei à minha terra, fui procurar Jerônimo de Joana, em meio aos seus. Soube que se houvera mudado para as terras de Penalva (no Maranhão) e ninguém sabia ao certo o seu paradeiro. Fiquei desolado. Mais tarde, sempre peregrinando à sua procura, soube evasivamente que estaria trabalhando como açougueiro, no mercado público do Pindaré. Então, mandei uma carta para um suposto Jerônimo de Joana naquele mercado e, simultaneamente, para o diretor dos correios, naquela cidade. E nada... Em seguida - como por vezes o faço nas minhas havenças profissionais - mandei carta para o Prefeito, para o padre da Igreja e para o Presidente da Câmara, do Pindaré. E nada... Mais tarde, de passagem por Santa Inês, fui “decretado” ao Mercado do Pindaré e nada...
Recentemente, depois de toda essa “via crucis”, acabei por tomar conhecimento do seu paradeiro. E do seu telefone. E falei ao celular com Jerônimo de Joana. E essa notícia ecoou naquelas encravas, onde Jerônimo fez de conta que matou o veado; lá mesmo onde ele contava estórias de Lampião e seu bando e Padim Cirço e as tiradas de Cordel: “Não há quem lhe cuspa pra cima / Que não que caia na cara /Quem a paca cara compra /Paca cara pagará”.
Em breve estaremos juntos. Tenho o compromisso de buscá-lo em sua casa; levá-lo em meio aos seus onde não pisa há mais de meio século e trazê-lo de volta ao mesmo lugar. É como assim está combinado. Deus proverá. Quem viver verá...
Viegas é o olhar do pássaro sobre o galho.
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