Volta e meia revelo aqui o que interpreto como RETRATOS DA VIDA. São fotografias da retina e da mente deste inveterado questionador do social. São fotos em preto e branco e à distância; outras tomadas em corpo presente - ao vivo e em cores; ao passo que outras são como uma fita - com áudio e vídeo. E então vamos às páginas deste documentário, na visão deste fotógrafo do social.
Página 01 - Sou um imperdoável frequentador das feiras livres. Gosto de ver o multicores e imaginar o sabor de tudo ali. E vejo frutos, hortaliças, aves, peixes, bugigangas; pessoas, cantilenas e tudo o mais. Em meio a tudo isso tem uma mulher de meia idade, ares de quem ainda pode ser aproveitada ao trabalho. Mas não, ela pede. Olho clínico, escolhe as pessoas à distância. Chega para o sujeito e, na lata, com sua voz rouca, ataca: "me dá um real". E como o real e mesmo o realzinho não andam fácil, logo as pessoas se cansam e outros ignoram. Ela não se dá por vencida, continua a sua peregrinação, mas aquele outro retruca em voz alta: DE NOOOOOOOVO??
Página 02 - Áudio e vídeo, ao vivo e em cores. Babaco é açougueiro. Também já tem o seu aposento. Barbudo, cabeludo, alguns dentes, não tira o velho e macerado chapelão da cabeça. Sua mulher, D. Ceiça, que o ajudava no açougue, sempre a seu lado, faleceu. Babaco agora está no ora e veja, sozinho neste mundo. Nas voltas que o mundo dá, pelas rodoviárias da vida, Babaco conheceu uma figura, epiléptica, sozinha, jogada para as cobras, perdida em si, também perdeu seu único documento: um registro de nascimento, diz ela.
Babaco gostou da mulher e ela também gostou dele. Logo, ele quer companhia, quer que essa coitada, entregue ao mundo e às baratas, viaje com ele. Sim, mas e cadê o "dicumento"? Também querem acasalar-se. A mulher tem cara de poucos ou nenhum amigo. Vive enfarruscada, cara de enfezada em tempo inteiro. Não tá vendo que esse "casamento" de encontro casual no abandono da rodoviária não vai dar certo?!
Página 03 - Era domingo à tarde. Naquela rua de poeirão ao "lado do gás", no velho Coco Redondo, rumo ao parque São José. Uma camioneta estacionada, capuz levantado. Do outro lado da rua, um carro da polícia e policiais. O motorista da camioneta parecia estar de posse de documentos para exibição à polícia. Até aí, digamos, tudo normal. Lente e rotinas do social estão a 60 por hora passando ali e pode flagrar o companheiro (ajudante) do motorista como que contorcendo-se em dor, colocando a mão sobre o seu antebraço esquerdo, como se tivesse levado ali violenta pancada. Mas isso é pura imaginação. Tremores dessa natureza, entretanto, desequilibram (como desequilibraram) as lentes e a retina deste fotógrafo do social.
Página 04 - Seu Militino tem um cachorrinho, desses brancos, peludinhos - do tipo que fazem a tosa e fica parecendo um ET, um guardião de calazar. Todas as manhãs, ele gorducho, ancas largas, metido nos panos, sai com o seu cachorrinho de estimação para passear, amarrado na coleira. Carinho é o que não falta ao seu prisioneiro. E lá se vão seu Militino e o seu bicho de estimação. O pequeno ET até parece o filho que seu Militino gostaria de ter. Como, aliás, outros tantos filhos em que cachorros proliferam nestes tempos vazios. Eis o tempo. Eis a vida!!!
Página 05 - M. C. é um tipo carente, excluída e "mental". É razoavelmente nova, nos seus trinta e poucos anos, imagina-se. Ela vive pelas cercanias da Beira Rio, mas estica-se pela "Praça dos Camelôs", por ali assim. E é sempre "fotografada" pelas lentes do cronista. Parece que vive diariamente à procura de namorado. Queixa-se nas alturas - como nas alturas e na sua rouquidão é tudo o que fala - que um familiar seu apossa-se do seu cartão e da sua aposentadoria. E continua na sua peregrinação, no meio da rua, no meio da praça. Lentes e áudio registram tudo aquilo e dá vontade de mandá-la ao Ministério Público. Mas como no verbo de Vinicius: "a vida é arte de falar baixo e pisar leve" ou como na lição da mestra: "boca calada não entra mosca".
Página 06 - A gente entra nas repartições de justiça - muitas e muitas delas, em qualquer parte deste chão maranhense - e há um atendimento formal, fechado, básico; muitíssimas vezes por entre os dentes. E só! O seio da justiça virou ou sempre foi uma CASTA, um clube fechado. E até parece que ali muitos e muitos e muitos nem pisam ao chão; não olham de frente nem no rosto das pessoas e é como se sentissem os privilegiados da sorte e da vida. Parece até que urinam guaraná e nem servem-se do vaso. Enquanto isso, grande maior parte dos altos mandatários desse mesmo território, eles que assinam embaixo e dão as ordens do terreiro, esses são mais flexíveis, cordatos, atenciosos, receptivos. Eis essa gente! Eis o poder que imaginam! Eis a vida! Ou como diria o meu velho pai: "bata quem puder". Ou, noutras palavras: apanhe quem não puder.
Página nº 07 - Bem ali tem um restaurante popular. Coisa do governo. Um realzinho o prato! Serviço público de sensível prestação e alcance social. Passo lá todos os dias, duas, três vezes. E, quando a boia cozinha, eu me sinto tentado: "Ah se eu pudesse"! Lá, os hipies entrosam-se entre si, os "pé inchado" também. Os esmoléus se aproximam. Dois pontos me chamam a atenção: é um sujeito solitário, cara de aposentado municipal. Um tipo acomodado. Chega por lá às oito e meia, nove, à espera da boia e fica quieto. O outro é um novato da cidade. Tem um quê de hanseniano, não sei. Ele anda numa bicicleta adaptada, é um catador de recicláveis na rua; um tipo que não se entrega, tal a disposição para o trabalho. Sacos e outros penduricalhos e tudo aquilo compõem a sua geringonça volante e retratam a "cara do dono". Eu fico vendo tudo isso e ouço a resposta que brota em mim: SÃO OS RETRATOS DA VIDA.
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* Viegas é um questionador do social.Email: viegas.adv@ig.com.br
Edição Nº 14495
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