Lembro com uma saudade e uma paixão avassaladora aquele meu tempo colegial. Foram dez anos lá dentro. Aquela escola dourada e prateada e encantada, foi um rio que passou em minha vida. Isto é, que continua passando em minha vida. E jamais imaginei que aquele “palácio” que um dia cheguei ali, vindo do mato, aos onze anos em calças curtas e pé de chinelo, em que cheguei apenas à portaria, viesse a ser esse oceano que inunda a minha vida, a minha realidade, os meus devaneios até hoje. Até hoje!
A minha Escola foi o berço e a canção; foi a dor e o coração; foi a luz e a direção. Foi o sonho, toda a minha aspiração. Foi o céu e foi o chão. Foi minha casa, meu quintal e toda minha emoção. Foi a vida; vida vivida – por vezes em realidade sentida, doída de uma dor adolescente, mais para o choramingo – menos para o doente. Foi o compasso, o esquadro, a folha dos meus riscos; o lápis dos meus rabiscos. Foi a régua dos meus projetos. Foi a chuva e chuvisco. Nasci e me criei ali; dou glória a Deus por isso – porque seja em sonho ou esperança ninguém sentiu nem viveu nem revive e nem ama aquilo como eu.

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Naquela minha Escola, respirava-se o rigor. O oxigênio era o rigor, a ordem, a escolaridade, a disciplina. Mais de quinhentas bocas; outras tantas cabeças; o dobro em pés e mãos; gente de todas a matizes, algo como um “quartel”, uma comparação que, aliás, tem tudo a ver. Tudo por conta do contribuinte. Tudo de boa cepa para o meu entendimento naquele e neste meu tempo, a partir de roupa lavada e engomada. Então era preciso um comando enérgico, criterioso e geralmente implacável. Quem viveu há de lembrar.
Naquele meu templo da escolaridade, vindo em parte da Ditadura de Vargas, com toques e retoques de um quartel-militar, havia como que um certo sentimento generalizado pela “linha dura”, mormente em meio aos professores, numa época em que muitos jactanciavam-se e regozijavam-se pelas reprovações ou exames de “segunda época” por “décimos”. Décimos de ponto. E esse era o rigor. Por “um décimo”, o aluno ficava reprovado e ponto final. Uma tremenda e inadmissível injustiça para os dias de hoje e, como de resto, para sempre.
Havia professores que cultivavam a linha dura, a reprovação e a “nota zero” ao pé da letra. Hoje, revendo essa passagem, parece que viviam obcecados, envenenados ou frustrados por uma perseguição constante e indefinida em tempo inteiro. E quem chegava ali, logo-logo ficava ciente disso – ou procurava superar essa muralha ou submetia-se aos seus grilhões. Um grande contingente seguia em frente, mas outros tantos sucumbiam ofegantes qual um peixe em água pouca ou fora dela. Por conta disso, vamos a alguns retratos envelhecidos na parede da lembrança.
NHA-DÊ era a titular em Geografia. Gordona, mal-fadada e dura na queda. Na turma parecia o carrasco de um campo-de-guerra, em meio aos prisioneiros. Ameaçava o tempo inteiro em dar “Nota zero”, individualmente. E dava. Nha-Dê ditava a matéria (os pontos) e cobrava-os integralmente, na hora da prova. Era terrível. Livros para as lições de Nha-Dê eram as suas próprias aulas. Nesse drama o aluno deveria tem em mente toda a sua matéria, para dissertá-la integralmente na hora da prova. Era aí que vinham os pontos, meios pontos, os “décimos” que ao “crivo” final, contribuíam para aprovar ou... reprovar.
CAMERRINO era um dos apelidos de um professor, um codinome que o adquiriu pela formação da sua fronte (formação do rosto). O cara tinha uma dezena de apelidos que a/s turma/s chamavam copiosamente, decorado, todos ao mesmo tempo. Mas ele nem sonhava sobre tais apelidos. Chegou por último naquele Grande-Quartel mas logo assimilou a regra, o rigor. Era criterioso, mas por “um décimo” mandava qualquer um ir plantar batata. O Doutor DÊ era o médico. Credo-em-cruz-Ave-Maria! O sujeito parecia enfezado e amargurado a vida inteira. Falava com a tribo como se fosse o dono de um campo de guerra, em meio a prisioneiros inimigos. E temível. Era terrível!
O Professor MANGUEIRÃO, que Deus o tenha onde mereça, era o titular em matemática. Dominava a matéria com um piscar de olhos. Não era de repetir, nem de voltar atrás. Jogo duro. E a turma se descabelava durante suas aulas. Certa feita, numa de suas provas, baixou um decreto: receberia pontualmente os exercícios dos retardatários no primeiro toque da sirene, pós-intervalo. Na hora da entrega fez-se fila com muitas provas ainda pela metade. Fui retardatário e caí no zero. Uma dor que amarguei por muito tempo.
O Professor AGÊ-ESSE era o titular em desenho técnico. Era um cara “bacana”, “legal”, que contava piadas e anedotas em suas aulas e que costumava advertir o aluno: “cuidado senão jacaré te nha-nha”. Era a senha do zero, da reprovação. AGÊ-ESSE em sala de aula ou fora dela, era como se a areia quente e o sol escaldante em tempo inteiro. Ninguém podia nem devia sequer olhar para o lado. AGÊ-ESSE era craque na matéria. E enchia o quadro com desenho/s em linhas, retas, traços, linhas pontilhadas, perspectivas, sombras, vista frontal, vista lateral. Uma loucura! E na hora da prova? Cobrança? Põe cobrança nisso!
A turma pelava-se de medo do professor AGÊ-ESSE. Ninguém jamais ousou “tirar um sarro” nem meter os pés pelas mãos com esse craque do desenho técnico. Bom de prova e de piadas durante as aulas, um dia ele contou que, de férias em sua cidade, vestiu o uniforme escolar que tinha característica de um fardão militar. E logo levou o apelido de “Felipe vira-bucho”, em alusão a um descamisado local que igualmente usava semelhante fardão. Eu que estava na plateia, quer dizer na turma, logo imaginei que dali em diante o cara seria o “Felipe vira-bucho” na linguagem da turma, às escondidas. Quem disse? Ninguém teve coragem de levantar essa aleivosia com aquele irretocável craque do desenho técnico – ele que reprovava por “décimos” e  vivia advertindo: “cuidado, senão jacaré te nha-nha!”.
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Viegas é advogado e questiona o social – E-mail: viegas.adv@ig.com.br