Ainda me lembro daqueles dias. Era um tempo de anos cinzentos. Um clima instável. Estado de Sítio, Ai-5. História recente. As pessoas andavam se perguntando sem entender. A vida política e social do país virou de cabeça para baixo. Quase tudo fora dos lugares. Uns presos e outros debandando. A Revolução de 1964 estava no ar. “Anos de chumbo”, que foi como vieram dizer depois. A esse tempo eu era um garoto que amava os Beatles e os Roling Stones, não estava nem aí. E curtia Renato e Seus Blue Caps, Fevers, Golden Boys e toda aquela Jovem Guarda de que guardo comigo para rejuvenescer a vida e a idade de um tempo. Era um tempo em que eu, “encasquetado”, queria ser jornalista, repórter e locutor de rádio. E caminhava contra o vento sem lenço e sem documentos, de mãos dadas ou sobre os ombros da garota do momento.
Nas repartições, nos órgãos públicos, nas instituições, nas escolas e faculdades, nos campos de futebol e onde quer que houvesse duas ou mais pessoas numa rodinha conversando ou ainda que falando de futebol ou das aventuras na praia, a Revolução estava ali! Marcando colado, serrado – foi como vim a entender depois. Nas repartições públicas, aí então, a Revolução respirava por todas as paredes e telhados. E eu, por ali, incólume, mal me dava conta do tempo, caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento, de mãos dadas ou sobre os ombros com a garota do momento. E ainda posso dizer: “velhos tempos... belos dias”. E Gil cantava “não... não chore mais”.
Naquela repartição, vinda de um modelo americano, aquilo era tudo cercado, vigiado, regulado por metro quadrado. O Chefe era um cara da maior dignidade. Exemplo vivo do servidor público em tempo integral, em honorabilidade e dedicação que sempre controlou os milhões da verba pública, centavo por centavo. E o chefe comandava a tribo com mão de ferro e na boa; gente de confiança em pontos estratégicos e a lei era uma só: todo o mundo tinha que mijar no caco. E não havia a diferença entre um tostão e um milhão, entre um lápis e um caminhão – era tudo da União.
Nessa repartição, como bem assim ocorre nos ambiente coletivos, tinha lá, porém, o seu lado zoológico. Sim, as pessoas e a sua natureza. O Vanderlei era motorista, sei lá doido ou metido a doido. Ele mesmo contava nas rodas abertas os nós que dava para viver de licença. Contava os mimos que leva ao seu médico; contava os “gueguel” que fazia, em viagens usando o carro da repartição. E não estava nem aí. Então o cara era doido, mesmo! O Cícero era um cearense, de olho na vida alheia, mas esquecia-se do sobrinho ESSE, que desmunhecava ao primeiro copo de cerveja. O Chaves era o re do cafezinho mais quente que a humanidade já produziu. Sabia a vida de todo o mundo e falava escancaradamente, nas alturas. O Velton, ex-pracinha, serviu na Segunda Guerra Mundial. Um dia, simulava dar tiros com uma metralhadora giratória. Foi quando o CHEFE apareceu! O cara virou uma estátua de sal. Na hora!
Aquele outro era filho da lavadeira do CHEFE. A mãe-lavadeira, amiga e serva e fiel à mulher do chefe, conseguiu através da patroa um emprego para o filho. Deu certo! De saída o novato foi ser mandante numa repartição do interior. E quando vinha à matriz, todo metido nos panos, olhar por cima, nariz empinado, afilhado do CHEFE, parece que nem pisava ao chão. E a turma sacando... Aí um dia, o dito rapaz chegou ao CHEFE, confiante em si e sem esperar a “rebordosa” abriu o jogo da “honestidade”: Sabe, chefe, minha mulher ganhou menino, adoeceu, tive dificuldades financeiras e... tive que pegar um dinheiro, mas vou botar tudo direitinho no mesmo lugar. O queêêêêêêê??????? Saltou o chefe nas alturas! Em questão de horas, quem se julgava afilhado perdeu o padrinho e o emprego. O chefe era assim: justo, mãos limpas, mas não dava refresco.
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MESTRE CÂNDIDO
Quando seu Pedro Barbosa adoeceu, inválido ao trabalho, mandaram buscar no velho Goiás um profissional de peso e respeito, para substituí-lo na chefia da GARAGEM, que era uma grande oficina encarregada dos serviços mecânicos da repartição. O nome: MESTRE CÂNDIDO. A turma ficou de orelha em pé, desconfiada. Mestre Cândido chegou para botar ordem na casa, controlar com mão de ferro, tudo no modelo americano, de acordo com os ventos da Revolução. Cândido, vindo do frio goiano, chegou ali metido num roupão tipo paletó, calça de linho. Chegou por cima. E a turma de olho no cara! E o mestre na dele, sem se misturar, mas no fundo um sujeito tranquilo.
A turma da GARAGEM, nos finais de semana, principalmente em dias de pagamento, curtia um birinaite e uma galinha caipira num barzinho da periferia. E, descobrindo que o MESTRE era chegado primeiro numa pinga e depois numa “loura suada”, logo carregaram o mestre. E o mestre ali pelo meio, de repente, era tudo farinha do mesmo saco. E no vai e vem do dia a dia, Mestre Cândido enturmou-se. E a turma deitava e rolava. Um dia fez uma reunião, todos de pé à sua volta e abriu o jogo: “Turma é o seguinte: brincadeira é brincadeira, serviço é serviço. Quero ser amigo de todo o mundo, quero que todo o mundo seja meu amigo. Lá fora, brincadeira é brincadeira, mas aqui dentro serviço é serviço”. A turma compreendeu a mensagem e o mestre. A partir daquele dia, a GARAGEM nunca mais foi a mesma. Entrou todo o mundo no eixo... E continuaram todos farinha do mesmo saco.
Nesse saco, o mestre contava que quando soldado da força pública tinha uma “mulher de cabaré” com a qual dormia quando ela encerrava o expediente lá pelas duas da madrugada. Depois, quando “deu baixa”, ficou desempregado e então a “madame” com quem dormia depois dos outros, segurava-lhe as pontas com roupas e dinheiro e outros mimos. Era então o seu confesso GIGOLÔ. Um dia a gatona deixou no ar que o casal teria uma surpresa, uma novidade! O jovem CÂNDIDO tremeu na base e pensou que seria um “sexo oral”. Ele, gigolô e dependente pensou: “fazer o quê, né?”. Nada disso. Na hora H, cama de lençol novo à meia-luz e a distinta vestiu-lhe um pijama zerado e tirou debaixo da cama, um pinico de mijo, três dias de curtido. E deu-lhe um banho!!! E partiu ardente, louca e desvairada para cima do seu predileto. E fizeram amor como nunca...
Este tema daria no mínimo duas edições. Foi um sofrimento, uma dor a sua redução pela metade.
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* Viegas é o olhar do pássaro sobre o galho e questiona o social. Email: viegas.adv@ig.com.br
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