Na velha Ilha de Maré, fica o Bairro do João Paulo. E neste, um trecho era conhecido por "RODO", onde o bonde fazia parada final e logo desenvolvia uma curva. E daí, o "rodo". Naquele trecho à beira da avenida principal, a mulherada se espalhava e fazia ponto na noite. O famoso "trotoar", a prostituição em meio de rua. De sorte assim que o RODO e o "buraco do tatu" era tudo ali mesmo. O rodo era o "ponto" de espera, ao passo que o "buraco do tatu" era o gueto das casinholas situadas em ruelas mais-que-apertadas e curvilíneas que ficavam mais adiante, adentrando mais para baixo, entre as ruas Agostinho Torres e Cerâmica.
Ali rolava "diamba" e diambeiros, cachaça e cachaceiros e em alta temperatura a baixa prostituição. Uma verdadeira caldeira do sexo barato a todo o vapor. Promiscuidade a olhos nus. E daí o "esquentamento", a "mula", o "cavalo de crista" e outras venéreas. Ave-Maria-Cruz-Credo! Ainda nessas cercanias, uma leva de "quartos" enfileirados ou isolados de mulheres que entravam e saíam e deitavam e levantavam e levavam seus homens, num ambiente de total naturalidade. Eu morava ali perto, tinha algo como 12, 13 anos de idade e não me dava conta do tamanho da pândega e do estrago.
Bem numa esquina, ao lado de um quase-secular socavão, por onde eu passava em dias e noites, e por vezes quase arrastado pelas correntezas das chuvas, morava a Dona Perpétua. "Perpéta", na linguagem geral. Dona Perpéta era uma senhora de boa idade, falante, aguerrida, olhos esverdeados, outrora bonita, uma veterana do ramo que comandava o seu "puteiro" de mulheres. Vez por outra, em finais de semana, Dona Perpéta tomava todas e escancarada ao sofá e endinheirada, falava nas alturas. Governava o seu negócio com mão de ferro, onde frequentavam os "melhorzinhos" e mulheres controladas pela "madame".
Nesse território, na Rua Simeão Costa - uma ruazinha de esgoto a céu aberto e chão batido havia um "chatô", uma versão mais-que-sofrida do MOTEL dos nossos dias. Era o tempo da bacia com água e sabão e uma toalhinha ali do lado, servidos pela companheira e anfitriã. Bacia de que todos de serviam e a toalhinha lavada e reutilizada, sempre. Promiscuidade, vírgula, na boa. Cruz-Credo. Credo em Cruz! - que era assim como esconjurava o populacho, lá do mato.
De quando em vez passava por ali um vetusto senhor, em trajes engomados, ao lado de uma madura senhora, que faziam um tipo "comportado". Todos sabiam que ele tinha uma patente na farda militar. E lá se vão os dois, a pé, discretamente; entocavam-se no CHATÔ e só se via entrar. Dificilmente se via sair. A dona do recinto desmanchava-se em mesuras quando o "salrgento" chegava por ali. Afinal, "patente é patente". Logo eu também queria ser "salrgento". Outros pedestres, ao lado de suas presas, também caminhavam a pé rumo ao CHATÔ e faziam parte da cena do bairro e os olhares e línguas afiadas nas janelas e portas-da-rua, ficavam ali pontiagudos. Mas fazer o quê? Se estávamos todos em terras do rodo e do buraco do tatu?
Naquele "quarto", que compunha um enfileirado de outros tantos, morava uma LOURA, inteirona, graúda, que com cara de ontem, levantava-se nas manhãs e jogava sua água de bacia usada na noite, no meio da rua de chão e pedras soltas. E eu, morador ali de perto, passava à sua frente todos os dias. Por conta desse indireto convívio, olhares se sucediam, fazer o quê?! Certa feita, ela me jogou um charme, restando-me uma guinada de 360 graus. Tô fora! E nunca mais a LOURA olhou em mim.
Em meio ao rodo, prostitutas, João Paulo e Buraco do Tatu, haviam os "gigolôs" - que eram aqueles homens, segundo o ditério, que usavam as mulheres ao final das noitadas e eram sustentados por elas com dinheiro que ganhavam da prostituição. Haviam casos históricos. Gigolôs que espancavam suas provedoras ou porque o dinheiro a que se investiam era pouco ou porque a mulher estava "indisposta" ou porque demorava-se no quarto com aquele outro. Havia um desses gigolôs que, nas manhãs, ganhava a grana de sua parceira e passava o dia jogando sinuca e baralho, tudo no dinheiro vivo.
Nesse meio de desvairada prostituição, pulavam gigolôs, raparigas, cachaceiros, rufiões, cafetinas e diambeiros. Também se misturavam valentes, briguentos, desaforados, esmoléus, andarilhos e outros do ramo. Numa dessas, um velho policial cara-de-maracujá-de-gaveta, ainda na ativa, famoso por suas bravatas e violência, sempre com um trezoitão na cintura fez uma declaração, com a mão direita, batendo repetidamente no ombro de suas divisas: "quem derrubar as minha duas lapas vai morrer". Era um cabo PM que segundo a boca geral tinha umas "dez mortes nas costas". Daí a advertência que fazia: "quem derrubar as minhas duas lapas vai morrer".
Ocorriam também brigas entre mulheres por causa do mesmo homem. Era cruel! A primeira coisa que acontecia era com uma pancada na mesa quebrar o fundo da garrafa. E com a garrafa quebrada, em punho, o estrago estava garantido. Rolava giletes, navalhas, unhas afiadas, tufões de cabelo, marcas de violência. O primeiro alvo era sempre "a cara" da outra. Daí que volta e meia encontrava-se um rosto latanhado e outros mutilados. Haja vida de cão!
Tempos depois e eu já dono do próprio nariz, conheci naquelas cercanias um figura chamada "SANTA". Santa era uma jovem fruta madura, de idade mediana, uma andorinha com muitas horas de ares e de voo, dona de um corpo escultural, de uma morenice à toda prova; de um rosto lindo; de um par de olhos que falavam e um consequente olhar pungente e fulminante! Não compunha a cena local mas... integrava o contexto do social. "Eu olhei para ela, ela olhou para mim" e não deu outra! Foi tudo-tudo à primeira vista.
A esse tempo os BEATLES estavam no ar. E eu aprendi a amar as suas canções. Hoje, quando olho no tempo, revejo aquele socavão de enxurrada e passagem obrigatória pronta para arrastar qualquer um; revejo a Dona Perpéta endinheirada, falante, ousada e dona da situação; também vejo aquela loura que me "deu bola"; o "salrgento" vestido nos panos e, nas tardes, caminhando ao lado da sua parceira; também me vejo querendo ser "salrgento"; vejo os CHATÔS compondo o social; a baixa prostituição em alta temperatura; o velho cabo-PM, desafiando a vida e a morte. E eu lá, fazendo o secundário e o curso de "datilografia"; ouvindo os BEATLES, olhando nos olhos de "Santa" e agora, recompondo as trilha neste CAMINHOS POR ONDE ANDEI.

* Viegas é advogado e questiona o social. Email: viegas.adv@ig.com.br