Viegas*

Noite dessas, o sono se foi e eu fiquei rolando na cama. E quando procuro a companheira, cadê? Tal como o sono que se foi, ela também não estava comigo. Mas logo fiquei quieto; imaginei que a consorte estaria na casa de sua mãe, ali bem perto. E fui conciliando comigo mesmo. Mas a esse instante o meu irmão, em pelo, entra no quarto. Estranho! Em meio a meus irmãos, isso não existe. Recomeça o meu mau humor, mas um pássaro na gaiola põe-se a trinar e o seu canto aos poucos me deixa tranquilo.

Saí caminhando e fui bater na prefeitura. Lá, havia um defensor que dava orientação jurídica falando nas alturas. Dei meia volta e, quando fui saindo, vi que a pouca distância caminhava na minha direção uma mulher magricela e bem atrás o seu marido, mas ela sumiu de vez como que por encanto e eu, desconfiado e inseguro, quase não acerto a porta de saída da prefeitura. Fiquei desarticulado.

E saí pela rua mal-iluminada e fui andando... andando... e quando dei por mim estava num bairro distante. Mas a certa altura passei por um lugar e disse com os meus botões: “acho que estou conhecendo este lugar”; “acho que já estive aqui”. A essa altura, tarde da noite, eu sozinho e sem camisa, desconfiado em mim mesmo, sentia-me perdido. Estressado. Então, caminhei um pouco mais e “encostei” numa casa. Cheguei, puxei conversa, declarei-me cansado e perdido. O anfitrião mostrava-se frio, indiferente, monossilábico. E eu, como que me dizia: “estou perdido...”.

Então, resolvi dar uma carteirada, uma coisa que não é do meu feitio, mas, naquele sufoco, quem sabe as coisas mudariam: “EU SOU O VIEGAS, aquele do rádio, lembra?”. E o sujeito nem aí, mas ainda assim me tolerava. Logo ali uma rede armada (do filho do dono da casa) e eu, zapt, caí na rede. Mas logo dei por mim que aquilo não me pertencia, então pedi desculpas e sentei-me num banco de madeira recostado na parede.

E pus-me a puxar conversa com o dono da casa, mas ele estava indiferente e tive sinais de que ele não me conhecia nem como “VIEGAS” nem como ninguém. Acabei voltando à rede. Estava exausto e com sono. Acabei cochilando. Mas aí veio o irmão do dono casa, cara de poucos amigos e foi soltando os pulmões e os cachorros: “LEVANTA VAGABUNDO, TE ARRANCA... ligeiro... ligeiro... TE ARRANCA, VAGABUNDO”. E a dona da casa, cuidando de seus afazeres e fazendo caras e bocas e me esconjurando em silêncio. Escorraçado, saio então para o meio da rua e vejo que a noite está em alta. Eu, sem camisa, logo imagino: “vão pensar que eu sou um ladrão, um desocupado”. E não tive coragem de pedir abrigo em uma das casas que ali adiante faziam-se fechadas.

Logo ouço uma zoada de um caminhão ali pouco mais adiante que carregava areia. Consultei o bolso e vi que, por acaso, tinha um trocado, algo como 15 reais. Imaginei: dou cinco ou dez para o caminhoneiro e lá adiante como uma panelada. E toco os pés em direção ao caminhão... foi quando acordei. Eu estava sonhando, debaixo de um pesadelo...

“PISADEIRA”

Naquele casebre distante, recostado mato adentro, no fim do caminho, num tempo em que minha mãe me dava um irmão a cada ano ou a cada ano e meio e assim vieram CATORZE. Ela, então, costumava a lamuriar nas manhãs: “esta noite PISADEIRA me pegou”. Eu ficava apavorado, inquieto com essa tal “pisadeira”. Era um tempo em que criança não podia perguntar aos mais velhos. Mas aí... eu procurava um jeitinho e abusava do coração de mãe querendo saber o que era essa tal PISADEIRA. Por mais que a minha mãe tentasse me explicar, nem ela conseguia nem eu entendia nada. E só ficava esgueirado cada vez mais.

Tinha para mim que essa tal PISADEIRA era uma entidade espiritual e a serviço do mal que sufocava, constrangia e fazia o sofrimento da minha mãe. E eu não tinha como defendê-la; não sabia como e por onde fazer; também não tinha real noção do “bicho” e ficava inquieto com aquilo tudo mas... fazer o quê?

O tempo, senhor da razão, bem mais tarde e aos poucos me deu a lição: é que minha mãe grávida de cinco, seis, sete, oito meses e ainda assim dando um duro danado, fazendo força no roçado, carregando na cabeça, trabalhando no sol-a-sol; um filho no bucho, outro no braço, dois ou três chorando atrás – isso por si só já era uma “pisadeira” em plena luz do dia. E levando essa vida para uma noite de sono que, alquebrada pela tarefa diária, por vezes começaria ainda na madrugada; por vezes, da mesma forma pelas tarefas noturnas até as tantas da noite. E na conjugação dessa vida, entre as escaramuças da realidade do dia-a-dia e o sono e o sonho entre pesado e sofrido da noite, eis a “pisadeira” – que e é esse PESADELO de que o seu primogênito ocupa-se agora.

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Um dia me disseram que “simpatia” para pesadelo é cruzar as pernas. E hoje eu me pergunto: será que, se naquela época minha mãe tivesse cruzado as pernas, evitaria aquela rotina de um filho no bucho, outro no braço e uma “queira” chorando atrás; teria ela evitado essa indecifrável “PISADEIRA”? Ou não estaria eu aqui para contar esse meu PESADELO? A resposta, tanto lá quanto cá, há de estar no intelecto, no consciente e no subsconsciente em que vivemos. Na realidade ou na sombra do quanto atravessamos. E daí a protração da espiritualidade – desse sopro de vida que enfim somos todos nós. E daí a “pisadeira” da minha mãe e daí o meu, o seu, o nosso pesadelo – seja na noite dormindo; seja ao dia, acordado.

* Viegas questiona o social