Viegas*

Sempre que Estou de volta à minha terra natal, na Baixada do Maranhão, o que, ultimamente, tenho feito com predestinada insistência, costumo ouvir ao longo do trajeto músicas para espantar a monotonia do estradão, em longas quase doze horas de viagem. E vou ouvindo os cantores da terra – esses que estão à margem do raio-soçaite cultural justo para manter-me ligado a esta Imperosa de todos nós. E lá vou eu ouvindo Ostérnio, Pedro Bispo, Francis Neto, Raimundo Paulino e outros da mesma raiz. Nesse devaneio, vou tecendo na mente o trânsito da cidade, as pessoas, os espigões entre construídos e os que se levantam e vou revendo no juízo as nossas ruas, o nosso rio Tocantins, o quotidiano da vida, os fatos que acontecem. A cidade. Faço então do estradão e das canções um reviver do nosso dia a dia por aqui.
Em meio ao som que emerge e ressoa das músicas no toca-CD, não abdico nem posso abdicar das toadas de bumba-boi de orquestra, narrando estória, executando canções e fazendo enredo. E tudo me transporta nas raias da imaginação, ora nas minhas raízes de interiorano, ora aos brilhos e bailados e batidões que fazem festa de bumba-boi em tempos de São João. Em meio a tantas toadas do boi de orquestra, onde desfilam em conjunto o ressoar do trompete, do saxofone, do trombone e da percussão ao som dos ruflados do “tambor onça” - todos que fazem a grande composição que é o “boi de orquestra”. E lá vou eu, estrada a fora, ouvindo aquele multiplicado de sons em conjunto como que a invadir a minha alma e a espantar a monotonia das esticadas horas de viagem.
Eu que costumo sair às duas da madrugada para chegar lá pela uma e tanta da tarde. E quando vou chegando por lá, é o boi de “orquestra” que se põe a bailar, tudo nos meus ouvidos e na minha mente; a reviver trajetória, a “brilhar”, naquelas noites de lua, tudo na imaginação. Ébem aí, na chegada, que eu perco as estribeiras e aumento o volume, e lá vou eu no chão empoeirado das estradas vicinais daquele meu lugar perdido - naqueles baixadões de chão seco e árido, quase chegando ao ponto final, chegando enfim ao meu lugar.
E quando lá estou, ora indo para a cidade (31 quilômetros), ora voltando de lá, quase tudo na vicinal de poeirão, vejo o quanto o meu coração se alegra. E o carro virado em pandarecos de poeira e terra – e meu coração que se abre na trajetória de onde outrora se fez uma estradinha que ora eu vencia a pé, ora em lombo de cavalo-de-cangalha – ora no inverno de todos os atoleiros, ora no verão de todos os poeirões. E a mente põe-se a reconstruir no tempo e no espaço os idos das minhas marcantes infância e juventude; ora a caminho da primeira escolaridade; ora para entregar a pouca e sofrida colheita que o meu pai trabalhava em lavouras (roças) de crua sobrevivência. E tudo isso fazendo o meu diploma e o meu “caneco”, a que de tudo guardo com honra e carinho nas prateleiras da minha lembrança e do meu imaginário – pegadas que fizeram a minha trajetória de escola, de trabalho, de honra e de vida. E de mente e mãos livres que semearam e semeiam.

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No domingo passado, por imperativo dos afazeres da profissão, tomei a estrada à procura de um cliente. e liguei o toca-cd do carro e... olha quem vem... aqueles toadões do bumba-boi-de-orquestra. e entre elas uma das minhas prediletas, tantas vezes repetidas ora no do estradão da viagem, ora nas vicinais de beira de casa, tomadas de terra e poeirão. Diz a toada, orquestrada por instrumentos musicais que fazem a festa e a tradição: “O brilho do meu batalhão é igual às estrelas / no céu em constelação / e clareia a terra, e clareia o mar / e no encontro das águas, reflete a luz do luar (bis) / a maré vai, a maré vem / e o meu touro encantado chegou para iluminar (bis)”.
Bem aí eu volto no tempo e na mente. Agora aqui na cidade grande, em chão de asfalto, espigões levantados e em levante; carros cruzando em disputa e trânsito perverso, eu, na pura mente, me transporto para aquele meu bucólico lugarzinho que se descobre no tempo, de chão empoeirado, de vicinal apertada, que tem apenas 19 casas, quase todas em tijolo e telha (sem reboco e sem tinta) que “virou povoado”; geneticamente modificado em comparação àqueles meus tempos de infância que tinha apenas seis casinholas, metade em taipa e cobertas em palha e a outra metade em pura palha. E vejo aquela minha gente - uns que se foram e que deixaram como herança outros tantos que persistem nas mesmas roças e lidas de sol-a-sol.
Agora mesmo é tempo de “rucinha”, uma roça temporona, destinada à mandioca, essa “mãe de todos nós”, e mais adiante um “feijãozinho”, por isso quase todos fora de casa e debaixo do sol, como sempre. e ouço tucanos, curiós, pipiras e bicos-de-brasa no seu canto lá dentro do meu matagal. E ouço os periquitos em bando a gralhar no alto daquela minha mangueira centenária a que dei o nome (em placa metálica) em homenagem ao patriarca que morava em frente – LOURENÇO ESTRELA – bem como outros tantos nomes para tantas outras árvores, na vereda de entrada a que também denominei-as pelos patriarcas e matriarcas que ali, na beira, deixaram saudades.
E vivendo aqui na cidade grande, debaixo de toadas de bumba-boi, eu revejo por força dos mistérios da mente toda aquela gente, a sua luta, os seus costumes, o sol-a-sol, a pouca água de cacimba por vezes distante; revejo ainda o vistoso e emblemático portão-coberto de entrada do meu MEMORIAL DE ANTÔNIO DE INEZ e posso entender que em tudo isso se fazem os mistérios de Deus que se consagram nos mistérios da mente. Da minha mente. E toca o batidão: “...O brilho do meu batalhão é igual às estrelas / no céu em constelação / e clareia a terra, e clareia o mar / e no encontro das águas, reflete a luz do luar...”.

* Viegas é advogado e questiona o social – Email: viegas.adv@ig.comn.br