O velho, peçonhento, solitário e tenebroso Zé Bicudo é tema recorrente dos meus textos. Já escrevi diversas vezes sobre o tal sujeito, mas nunca refaço nem copio o texto que escrevo. Isso faz parte da minha "personalidade", nos meneios da escrita. Imagino que se copiar daqui, control-C e control-V dali, vou acabar plagiando a mim mesmo e, de plágio em plágio, tenho medo de perder o espírito da criatividade; o exercício dos neurônios que estimulam o escriba. E então volto pela "enésima vez" ao lendário Zé Bicudo.
Zé de Fosta, Zé da Gorda e Zé Bicudo encarnavam o mesmo cidadão que preferia mesmo ser chamado de SEU ZÉ. Ele odiava mortífero e ferino quem o tratasse pelo indefectível ZÉ BICUDO, que era como absolutamente todos o chamavam em sua ausência mas... na lata, era mesmo que cutucar o diabo com vara curta e esperar o rebote da cascavel.
Zé Bicudo veio das bandas da "beira do campo" e, quiçá, pela companheira que por ali teve, ainda maduro, acabou sendo morador das terras do meu velho avô, Doca Barros. Ainda da minha infância, tenho vaga lembrança que ele morava dentro do mato, com acesso precaríssimo, sozinho numa casa, em cuja cumieira lá em cima morava uma cobra que repugnava os supostos intrusos. Mais tarde, porém, cruzamo-nos tantas vezes.
Zé Bicudo tinha fama de virar "labisonho"; de virar porco na noite e atacar as pessoas nos caminhos ermos. Ali nos idos da minha criancice, passando pela juventude, rapaz refeito e até hoje o povo daquele tempo, de "mamando a caducando", sabia das histórias tétricas, assombrosas, daquele sujeito que tantas vezes andava nas noites sozinho e sem camisa pelas estradas.
Ninguém ousava provocar Zé Bicudo pelo seu apelido, nem o destratar por absolutamente nada - nem por brincadeira e quem assim o fizesse que se preparasse para sofrer dura represália. Zé da Gorda tinha fama de virar o capeta ali naquela encruzilhada que forma um "Y" nas terras que hoje pertencem aos herdeiros do velho meu pai. O local é sombrio e encoberto por mangueiras centenárias. Foi lá que Joana da Mangueira, ofendida por um suposto assédio, provocou o velho Zé Bicudo pelo apelido para em seguida ver que uma ventania e pancadarias debatiam-se sobre sua casa para, apavorada pelas tentações do velho lobo, deixar a local no dia seguinte e abandonar para sempre a sua morada. Foi como em própria voz, ouvi daquela despachada, fogosa e namoradeira Joana da Mangueira, num eito de corde de arroz, na roça do meu pai.
Lá pelos seus oitenta e poucos anos, no apagar das luzes do seu diabólico universo lobisomem, Zé Bicudo, quando com umas pingas no juízo e provocado em meio a outros tantos, propunha-se ao desafio em virar o bicho publicamente. Mas o bom-senso e o pavor de uns tantos sempre intervinham porque a "marmota" era horrível. Ouvi contar isso algumas vezes. É certo ainda que Zé Bicudo morreu com mais de cem anos, enfraquecido, mas parcialmente lúcido, e foi enterrado por um neto do Velho Doca Barros que tornara-se o prefeito da cidade. Seu enterro foi custeado pelo erário público.
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Sempre que vou à minha terra, onde ali construo o MEMORIAL de Antônio de Inez, para reconstruir a memória do meu velho pai e para onde já fui por vinte e duas vezes em três anos, provoco conversas sobre o lendário Zé Bicudo. Os moradores mais antigos ainda sabem tudo de Zé Bicudo; os mais jovens, contudo, dele têm apenas distantes referências. Mas o que me traz a esta, novamente, é um fato último que vi e ouvi contar do velho sujeito.
Diz que era um fim de tarde. Zé Bicudo e outras pessoas encontravam-se numa bodega em meio a uma conversa, quando um rapaz resolveu soltar bravatas. Puxou um revólver 32 da cintura e disse que o tinha cheio de bala para um bicho que o cercasse na estrada; para um homem que virasse porco; para um "labisonho". Pôs o 38 na cintura e insistia em sua disposição em não arredar caminho e encher "o bicho de bala", se fosse cercado. No fundo e no raso era uma ostensiva provocação ao velho Zé Bicudo que, resignado, ouvia calado. O "rapazote" lá, mais uma pinga, mais outra pinga e o revólver ali, cheio de bala, doido pra puxar o gatilho e garantindo-se disposto ao estrago. E Zé Bicudo na dele, sabendo que aquilo não era uma "indireta" para si mas... uma direta mesmo.
Ainda era cedo da noite quando o "rapazote" deixou o local, a caminho de sua casa, a uns três quilômetros dali, com o seu revólver carregado de bala. Mal o sujeito sai, Zé Bicudo, calmo mas incisivo, saiu à beira do terreiro e à direção de onde o "rapazola" saiu e executou um exercício vocal, um grito, assemelhado ao uivado de um cachorro. E repetiu a dose. E cada qual foi viver a sua vida.
No dia seguinte, a notícia que se teve é que o "rapazola" perdeu-se no caminho, não deu conta de chegar à casa, onde aliás chegou no dia seguinte pelos braços dos outros. Perdeu o revólver no mato, de nada sabia do que lhe houvera acontecido e... finalmente "estava todo mijado e obrado". Obra sabe de quem? De Zé Bicudo! Eu heim???!!!
* Viegas guarda na memória relatos das peripécias e diabruras do velho lobo a quem o conheceu pessoalmente. E questiona o social.
Edição Nº 14649
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