Veríssimo era filho de Honorato. E no avesso da linguagem daquela gente ficou rebatizado como “Virisso de Norato”. Virisso tinha fama de comilão. Quando Veríssimo de Honorato Barros casou-se com Raimunda de Milhano, eu ainda era um garoto. E me perguntava: por que uma moça casaria com um homem que tem fama de “cumidô”?! E via, no gesto da jovem-noiva, um ato de coragem e despojamento. E interpretava essa gulodice com estranheza. Casaram-se de papel passado, com banquete e tudo o mais e viveram até que a morte os separou.
Virisso de Norato. Homem direito e trabalhador, na intimidade e no geral era “BICO”, para todos ali. Bico pra cá, Bico pra lá e Bico na língua do povo, como homem “cumidô”, que comia por três ou quatro. E assim como Zé da Fosta era carimbado como sujeito que virava “labisonho”, Grigóro de Bastião tinha trato com Currupiro, Bico tinha fama de “cumidô”. Zé de Fosta, Grigóro e Bico eram personagens da língua diária daquela gente feita de roça e facão. Bico tinha muitas histórias em bravatas de comilança e servia de conversa por onde chegava e passava. E ele, na cara limpa e na lambança, ia tocando e não se dava por vencido. Nem aí. Bem humorado e pacato, Bico levava as zombarias na troça e na cara limpa, contanto que na hora da boia bico em primeiro lugar!
Naquelas bandas, Joana da Mangueira era uma “rapariga”, bonitona, falada e falastrona e “trabalhadeira”, dona de uma voz estridente, de um insinuante par de ancas e do sexo que mexia com a cabeça daquela gente. Livre em tempo inteiro e roceira como todos os outros. Não tinha roça mas “ganhava dia”, isto é, ganhava por diária nas roças alheias. Amava sem nada receber, ganhava a vida no sol-a-sol e dava-se a quem lhe desse na telha. Naquele ano, porém, Joana da Mangueira botou um “quartel de roça” e estava entusiasmada com a sua lavoura. O plantio de arroz, naquele lugar, todos sabemos, tem o tom de ritual. Tem que ter bastante “arroz-de-planta” e muito arroz para comer no dia. Pode não ter um caroço de arroz para mais nada, mas... no dia da planta, o arroz aparece com fartura! Justo para que, igualmente, tenhamos fartura na colheita! O povo antigo pensava assim.
Para o plantio do arroz, Joana da Mangueira contratou Virisso de Nonato, o BICO; Zé de Quelé e Raimundo de Nonata. Com Joana, eram quatro no eito. Dia bonito! Quartel de roça, bonito! E Joana-da-Mangueira, faladeira e bonita! Ali o dia começa cedo e Bico, bom de boia e bom de serviço, rente no batente. De sacho (ferramenta de plantio) na mão, Bico fazia um “arruado” e ia cavando e os outros vinham atrás, plantando, isto é, pondo pequenos punhados de arroz dentro das pequenas covas. E toca serviço. Joana, além da prosa livre, desde cedo, logo deixou firme que havia boa farta - “às pampas” - para todos. E esnobava: peixe-fresco-com-arroz e farinha d’água. E isso oxigenava o ânimo dos trabalhadores. BICO, então, era puro sorriso largo e conversa solta. E, para completar esse garrafão de oxigênio, havia um ditério: “Te lembra da boia do meio-dia e toca pra frente”. Aí então as adrenalinas iam nas alturas e o plantio tocava-se a todo o vapor.
“Meio dia em ponto”, terminam o eito e todos para o tijupá (um casebre improvisado à beira da roça. Antes, porém, passam pela cacimba e tomam um banho para deixar o corpo mais sedento à boia. Naquele meu lugar, existe um “fado” (mal-costume) da pessoa levantar a tampa do caldeirão sobre a trempe para ver o que e o quanto ali tem. BICO não se conteve e levantou as tampas das panelas: um caldeirão de peixe “no pescoço” e outro caldeirão de arroz, até na tampa! Boia para encher panças! Mas Bico logo destratou daquilo tudo e soltou o verbo: “Ah, só isso?! Isso eu como sozinho!”. Para quê? O mundo veio abaixo. Os demais se entreolharam. E BICO lá, na boa, desafiando e repetindo: “...isso eu como sozinho...”.
Raimundo de Nonata e Zé de Quelé, em coro, logo iniciaram o bate-boca: - Tu não come. - Eu como. Bico se garantia. Nesse “fuzuê”, como bem era do meu lugar, logo vem uma aposta. - Tá bom. E seu eu comer? Pergunta Bico, empurrando os parceiros à lona. – Se tu comer tá comido, respondem as vítimas. E insistem: - Vamos fazer uma aposta. E lá se foram pelo meio dias de serviço, facão, porta de baile e tudo o mais. Aposta feita. E continua o incidente naquele almoço. Bico senta-se à “mesa” posta ao chão e no chouto da boia, sozinho, misturando porções de farinha-de-puba e vai tocando direitinho, bonitinho. Come tudo, tudinho, sozinho. Um cadeirão de arroz e um cadeirão de peixe-fresco. E todos ali boquiabertos vencidos diante daquela cena. E, mesmo banhados e incrédulos, ficam com fome. E naquele sertão até hoje, meio século depois, ainda regurgita uma frase da história: “Ah! Só isso?! Isso eu como sozinho...”.

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Bico tinha muitas histórias. Numa delas, na “mesa” posta ao chão, almoço coletivo, Bico ia traçando sem dó nem piedade da concorrência. Era como se fosse de avião e os outros indo a pé. Um deles, em desvantagem, gritou: “compasso, Bico” (quer dizer: mais devagar; no ritmo dos demais). E BICO, só no relaxo: “hum-hum”. A frase da interpelação ficou na história. E o “hum-hum” de Bico, também!
Faz anos, estive na minha terra. E, nas encruzilhadas da vida, encontrei-me com BICO que era, aliás, um parente em terceiro grau. Logo, puxei prosa; coloquei-o no carro e saímos estrada a fora. Sabe-se ali que o grande mote da recepção a uma pessoa no terreiro do anfitrião é este oferecer-lhe algo “de-comer”, no mínimo um café. E aí Bico, vamos tomar um guaranazinho? “hum-hum!”. E lá se vem uma tubaína de dois litros, que voa ligeiro. Mais uma, Bico? “hum-hum”. E lá se vem mais dois litros. Que tal, Bico, uma bolacha pra temperar? “Hum-hum!”. E lá vem um pacote de bolacha! E aí Bico, mais um guaranazinho? Bico não se conteve e abriu o jogo: “Isso eu tomo até encher o bucho”. E tome tubaína...
A certa altura, porém, Bico continha-se na bebida preocupado com um neto que ficara em casa, pois queria levar-lhe um pouco do guaraná. Estava se reprimindo, “regrando” a bebida, para não deixar faltar ao neto. - Não Bico, pode ficar à vontade que a do seu neto está garantida. Bico tomou um novo alento e... tome guaraná... tome guaraná, levando consigo a do neto que ele mesmo deixou grifado: “Desta aqui eu ainda bebo um pouquinho...”. Ou como no plantio de Joana da Mangueira: “ah! Só isso?! Isso em como sozinho”.
(Texto já publicado. Redimensionado e atualizado)

*Viegas é esse olhar do pássaro sobre o galho e questiona o social. Email: viegas.adv@ig.com.br