Naquele meu chão varrido de paupérrimo que conheci quando criança, o patriarca MANÉ FOLHÁ era, com a sua tribo, o mais pobre entre todos os pobres, um símbolo amargo do "miseré". Carregado de filhos com sua TEREZA FOLHÁ, moravam todos ali, na BAIXA DA FOLHA, em terras de Mundico do Sertão. Baixa da Folha era, portanto, o último gueto daquele chão de analfabetos, feito de sol, foice e facão. E uma roça todos os anos, a vida toda.
Baixa da Folha era uma corrutela de quatro ou cinco casas. De um lado do caminho, o casebre do velho Folhá, do outro lado os casebres dos seus filhos e genros e netos. E viviam ali no frio e no calor da pobreza, cada qual por si com suas pequenas roças de fundo de quintal, sobrevivendo a duras penas - cumprindo missão vida, no mais cru paupérrimo que os meus olhos já viram em corpo presente.
Baixa da Folha, porém, tinha lá seus altos e baixos. Chico Costa, do outro lado do caminho, era "genro do velho Folhá". Carregado de filhos, não se continha e... ainda bolinava em cima da cunhada. Claro que isso fazia do local um "balaio de gatos". E, como se não bastasse, volta e meia irmãos e primos ameaçavam-se entre si: "Te corto a tua cara", uma frase que tantas vezes me doeu. Tanto assim que a frase se fez verdade e escorreu por lá.
Ambrósio chegou depois, catou a "Julhana", aquela irmã que compunha o triângulo com o cunhado Chico Costa, não se importou com o passado e tome netos e mais netos para o lastro da pobreza da Baixa da Folha. Ozébia, filha do velho Folhá, essa morreu de "má de peito" que o povo esconjurava o nome "tuberculose", tuberculoso. Vicente de Ozébia, já na 3ª geração, foi meu contemporâneo. Ainda jogamos bola. Ele tinha uma "ferida braba" numa das pernas e foi tema nestes CAMINHOS, na crônica "A SAÚDE DO MEU LUGAR". Vicente morreu no fundo da rede da pobreza e da miséria, ainda novo, com alguns dentes da boca.
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Naquele meu chão o "recurso" de qualquer um é(ra) sempre uma mangueira (manga comum) no terreiro de casa ou um "bananal" de alguns poucos pés de banana-coruda, ao fundo do quintal. Na Baixa da Folha, nem isso tinha. Tinha, porém, um matagal quase invadindo as casas, tal como a pobreza invadia a todos ali. Mas Baixa da Folha não vivia só desse "baixio" de agruras e tinha lá seus pontos altos, que era quando uns e outros metiam a cara na pinga, ou regurgitava o ciúme da irmã ou da cunhada e adrenalinas nas alturas e o repique sempre presente: "te corto a cara / te corto a cara".
O velho Mané Folhá, demais disso, guardava na sua biografia a tradição de "bobo da corte" e coiteiro de cigano. De sorte assim que de tempos em tempos, o bando de ciganos liderado pelo velho VERDIANO espalhava-se no terreiro do velho Mané Folhá. E desapareciam leitões, galinhas e roupas do quarador e o que de resto encontravam pela frente. Era bem aí que a vizinhança fincava pé; nem mato nascia por onde os ciganos pisavam. E a redondeza esconjurando: "ave-maria-cruz-credo o bando de verdiano taí". Folhá naqueles dias de rancho de cigano era o vilão. Até porque todos sabem (sabiam) ali que cigano "é alma do cão".
Como bobo da corte, Mané Folhá fez a sua parte maior. A parte que ficou. Dizia frases de tolice que foram e são repetidas a vida inteira, geração pós-geração. E quando o velho Folhá caía na pinga, o bobo da corte se soltava em ditérios e cantoria - deixando um eco em pedra de memória naquele meu sertão feito de calejados e pés no chão. Hoje Baixa da Folhá não existe mais; nem Mané Folha; nem a sua Tereza Folhá; nem a sua tribo, nem mais nada. Nem mesmo aquele velho caminho que cortava entre o Sertãozinho (do dono das terras) e o pequeno Carro Virô, do meu velho pai, onde edifico agora. Hoje é tudo uma entrava de matagal, por onde não passa mais um único "pé de cristão" mas, ainda assim, eu que tanto me dou a CAMINHOS, quero agora reabrir esse passagem (esse caminho).
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Recentemente, nos acasos da vida, encontrei-e com EDUARDA, filha de Chico Costa, neta do velho Folhá. Conversa solta, nas alturas, foi um abraço e lembrança em sentidas emoções. Eduarda mora não muito distante da sepultada Baixa da Folha. Tem casa boa (para os padrões do lugarejo), tem aposentadoria rural, fala com independência, mora na beira da estrada carroçável, tem geladeira e luz elétrica em casa.
E me disse Eduarda, vozerio nas alturas, com uma pluma de orvalho nos olhos e ainda com a sequela do "corte na cara", feita por um primo na disputa do "dicumê", a cujo primo lembra com sentida saudade e aberto perdão - que tem saudade de sua Baixa da Folha; que "tem saudade de pé de pau por pé de pau"; que dorme e acorda pensando naquele lugar. E que todo o seu ideal de vida é um dia ainda poder voltar a morar naquele lugar. Um ideal que se faz tão sepultado quanto sepultado se faz a Baixa da Folha, já que por lá não tem mais nem mesmo caminho, nem um pé de vivente, sequer, senão a memória sofrida do velho MANÉ FOLHÁ.
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"Viegas é esse olhar do pássaro sobre o galho; um incorrível questionador do social.
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