(e a saga de mãe-Carolina)
Faz anos, escrevi nestas colunas "O Jipe de Chiquitinho e a Saga de Mãe Carolina". E o tema, como demais outros, foi-se ao vento. O mundo deu voltas e, não sei por quantas cargas d'água, o texto acabou parando nas mãos de um filho do velho Chiquitinho e daí para o resto da família. Agora mediante expediente a mim endereçado, tomo conhecimento de que o tema irá compor um livro que a família escreve, em memória, dos "CEM ANOS DE UM LUTADOR". E me pede licença para a publicação do texto - no que declarei-me grato, pela publicação. Vamos rever "O JIPE DE CHIQUITINHO..."
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Início dos anos 50. Eu deveria ter uns cinco a seis anos e "aprendia a ler" na Escola do Tio Mundico, com direito a "argumentos de tabuada" aos sábados; bolos de palmatória tinindo, olhos vermelhos, coração em súplica e joelho ao caroço de milho, na releitura da lição. Esse merendão de encher bucho e estimulante à frequência escolar, bancado pelo governo, estava longe dali para frente em quase meio século. Tio Mundico era um solitário e voluntário facho de luz naquelas trevas do analfabetismo em foice e facão. Luz elétrica, bicicleta, picolé, pasta-de-dente, água gelada e a gente nem sabia se isso existia. E um "sapato" aos pés... era só de tempos em tempos - e olhe lá!!!
Era tempo de verão. Verão em que todo o bicho pode andar. Numa frente de serviço, bancada não sei por quem, melhorou-se ali uma tal "estrada de rodagem", que era o que alguns também chamavam de "estrada real". Pois bem, logo-logo anunciou-se que daí a uns vinte e poucos dias, ali passaria o Jipe de Chiquitinho - um velho político, das bandas de São Vicente de Férrer e São João Batista, experimentado na arte e artimanhas de ganhar eleições, em tempos de urnas de pau, amarradas com barbante.
Pois bem, durante esse tempo de espera e ansiedade, o povo daquela região e mais outras tantas léguas depois não mais dormia, não mais sossegava. Nas rodadas de terreiro, nas feitas de baile; nas farras-de-caixa, nos balcões de bodega e nos eito de capina e coivara, e entre uma pinga e outra, tudo o que se falava era na espera dessa passagem triunfal e histórica do Jipe de Chiquitinho. Era como no dizer do meu velho pai, para ilustrar tamanha ansiedade: "o povo vivia caindo a arca".
Até que enfim chegou a longínqua e mais que esperada data! Naquele dia, o povo só deu meio expediente na roça, ou nas casas-de-farinha e outros que nem trabalharam pois que precisava tomar banho, vestir roupa-boa e caminhar léguas de chão até a "estrada de rodagem", para enfim ver esse bicho do outro mundo que por ali passaria - o Jipe de Chiquitinho! Eu, no pueril dos meu cinco a seis anos de idade, lógico, estava no meio dessa "fanxina" caminhando em léguas a pé, em meio ao converseiro de meus parentes e tanta gente naquelas veredas que ali se chama "CAMINHO".
A esse tempo, ele que mais tarde tornou-se o meu eterno cantador LUÍS GONZAGA (o nosso Gonzagão), era além das cantigas-de-boi, a quem único, o povo fazia-lhe a voz. E entoava-se uma canção: "Bate a enxada no chão/ Limpa o pé do algodão/ Pois pra vencer a batalha/é preciso ser forte, valente robusto/ E nascer no sertão/ Tem que suar muito, pra ganhar o pão / Pois a coisa lá, não é brinquedo não". E lá se vou eu, cantarolando esse meu agora pranteado Gonzagão que como absolutamente ninguém cantou o chão desta gente, rumo à "estrada de rodagem", à caça de ver de passagem - só de passagem - o Jipe de Chiquitinho! Ah se esse Jipe parasse pra nós! Suspiravam uns! Ah se a gente pudesse ao menos passar a mão no jipe! Sonhavam outros. E eu lá, contracenando com a trupe e vivendo a história - sem jamais maginar que um transcenderia em memória...
Ficamos todos ali naquele ponto de convergência de onde vinham pessoas de Vila Pereira, Encruza, Laranjal, Nova-Aurora, Vai-Quem-Gosta, Vai-Quem-Quer; dos Diolindo e Ciro Campos; da Grota da Macaca e tudo o mais, em terras de Sertãozinho de Mundico do Sertão. E deu cinco horas e deu seis horas e nada! Entre aquela gente, havia uma vetusta senhora, descendente de escravos que como ela mesma diria que "ainda pegou uma pontinha da escravatura", oitenta e tantos anos; entortada na arrancação da mandioca e serviços de capoeira; feita a fogo do sol da roça, de dentes encardidos e estraçalhados. Era mãe-Carolina! Mãe-Carola, assim tida e havida naquele meio de mundo, era uma matriarca, de um matriarcado que ela nem se dava conta; de voz fortemente anasalada, sotaque arrastado, pesado; de boca torta pelo costume do cachimbo que "faz a boca torta". Por vezes um ícone de zombarias a cada frase que pronunciava.
Ali naquele meio do povo e na ansiedade à estressante espera do JIPE DE CHIQUITINHO, ninguém era de ninguém. E mãe-Carolina, octogenária e alquebrada, primeiro acocorou-se; depois cansada, sentou-se ao puro chão e esticou as pernas para dentro da "estrada de rodagem". Nisso lhe acorre um neto, adverte a avó, ao que esta lhe responde com o seu tom nasal de sempre: "intonse mê fiii qui é pra vê o carru apitá". O meu irmão José Viegas, hoje gerente de banco oficial, três filhos no doutorado, assim como toda nossa parentela e vizinhança estava no meio dessa "fanxina". E até hoje, "até hoje" ele se questiona sobre como e de onde Mãe-Carolina teria a noção de que um JIPE poderia apitar!
Agora são "sete e pouca" daquela noite de verão; com o povo em alvoroço e o coração em tum-tum-tum, quando de repente, lá no esticadão da estrada de rodagem, surge uma luz; dois faróis cortando a noite, "alumiando na rodagem", tremulante e correndo rápido na nossa direção. Mãe-Carolina, uma visionária do futuro, mesmo de pé mas na beira da rodagem, realizou enfim o seu desejo: o Jipe de Chiquitinho passou apitando e seus passageiro dando "adeus" e deixando aquele povo emocionado, realizado, feliz da vida porque viu um Jipe pela primeira vez! Um jipe que, de um Chiquitinho cordial e acenando, deixou aquele "cheiro de gasolina", e o poeirão de confraternização. E mais ainda: passou tocando aquele que viria a ser o meu eterno / Gonzagão: "Bate a enxada no chão/ Limpa o pé do algodão/ Pois pra vencer a batalha/É preciso ser forte, valente robusto/ E nascer no sertão/ Tem que suar muito pra ganhar o pão / Pois a coisa lá não é brinquedo não...".
* Viegas é advogado e questiona o social.
E-mail: viegas.adv@ig.com.br
Edição Nº 14718
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