Era meados de 1975, faz 36 anos. Eu ainda engatinhava os primeiros passos na profissão. Era manhã quando o telefone tocou. Um amigo me indicava uma cliente. Uma hora depois, chega ao nosso trabalho uma distinta senhora, nada de se jogar fora, que eu já sabia ser uma viúva, na entressafra da viuvez. Ainda ressentida com a perda do marido e, como ninguém é de ferro, até que ela toparia um “free lance” com um vizinho da frente, bacana, endinheirado, gentil, amistoso e cordial, mas este um tremendo garanhão, mil mulheres à sua disposição, derramando pelo ladrão, fingia não perceber os olhares em súplica daquela viúva a si disponível. Depois disso, o cara (o vizinho) não era daqueles que se aproveitava, mesmo que “só para fazer o mal”.
Naqueles tempos do velho Goiás, a jovem viúva andou por lá, batendo os costados em tratativas de assunto pessoal. Mas eis que senão quando, ali pelas beiradas da rodoviária da vida quem se lhe aparece? Um princípio encantado ou... o gênio da lâmpada. Essa “entidade” que surgiu do nada, em forma de ser humano, parece até que foi uma cria de um bonachão chamado Vinícius quando este disse que “a vida é a arte de falar baixo e pisar leve”. Então aquele ser humano era isso aí: falava baixo e pisava leve. E esse biotipo, logo despertando os sentimentos daquela jovem viúva. O sujeito era razoavelmente “estiloso”, vestido nos panos e isso também despertou! E... para completar, dizia-se aposentado de uma estatal do petróleo; viajou por diversos países e aposentou-se (pela petroleira) quando ainda estava na Argentina.
A jovem viúva, sedenta e carente, voltou animadérrima, certa de que teria encontrado a sorte-grande naquele príncipe encantado. E ainda por cima sem parentes e sem herdeiros, ele queria encontrar uma pessoa que se lhe devotasse afeição, estima e nem tanto pela cama, mas pelo “amor platônico”, em favor de quem deixaria os seus bens e toda a sua riqueza. E quando a viúva pintou a quinta parte desse terráqueo para as suas amigas mais chegadas, estas também se descabelaram e bradaram a um só voz: “vai lá...” vai lá”, “é tua chance na vida – é agora ou nunca”. Embalada pelos embalos em coro das amigas, frente àquela montanha de diamante - “fala baixo e pisa leve”, ricamente endinheirado e bem aposentado e ainda por cima sem parentes e sem aderentes, e querendo encontrar o seu “amor platônico” para deixar tudo, tudinho do que dispunha; aquele, sim, era o gênio da lâmpada, um príncipe encantado! Foi com essa retórica que recebi a jovem viúva em consulta.
Depois de ouvi-la em detalhes, declarei: “esse enredo (a história) não fecha”. Como assim? Entre ofegante e decepcionada, ela me perguntou. Fui tecendo: não faz sentido que um homem rico, endinheirado, hospede-se numa espelunca de rodoviária. Também não faz sentido que ele mesmo, ainda que sozinho, não tenha parentes ou aderentes que reclamem a sua herança. Também, não posso entender que um homem de idade, assim do nada, ricão, queira acasalar-se com uma mulher de dois filhos, ainda jovens – os quais sem dúvida lhe trarão problemas de convivência. Também não me cabe entender que um homem maduro, viajado e “vivido”, queira assim, do nada, entregar a sua fortuna a quem mal conhece e ainda mais em terra estranha. E assim por diante em tantas outras considerações sem nenhum aval às pretensões que se me apresentavam sobre a mesa.
Foi aí, então, que sugeri a proposta de conhecê-lo pessoalmente. A viúva imaginária da sorte-grande concordou, até porque aquele príncipe encantado tinha um encontro programado em breve na casa da sua nubente, onde, segundo ela, deveria permanecer por alguns dias. Que lá nada, já iam mesmo era morar juntos. Trato marcado, trato cumprido e no dia e hora combinados lá estamos nós, os três, frente a frente, para saber “quem é quem” na Belém-Brasília. E o que era em princípio, para mim, um “momento delicado”, aquele discípulo do “fala baixo e pisa leve” tirou de letra, com um “pode me perguntar o que quiser” e disse com um leve sorriso de quem se sente cavalheiro.
Para começo de conversa, esse tremendo fala-mansa e príncipe encantado me disse que era realmente aposentado da estatal do petróleo. Era solteiro e sozinho, não tinha parentes. Também disse que os seus bens eram constituídos de imóveis, aluguéis e aplicação financeira e que tudo era administrado por um “procurador”, um advogado que o lembrou com outro sorriso e dando a entender que o cara era “gay”. E que com este, mesmo sem demonstrar aborrecimento, mostrava-se ligeiramente estremecido. E lá se foi uma hora e tanta de lábias. E foram embora. E eu, comigo, em reticências.
A viúva, como combinado, voltou depois ao escritório para o diagnóstico final. E, novamente, declarei: “não fecha”, “... tudo fora do lugar”; “nada disso tem lógica” e a tudo justificava o meu ponto de vista. E lá se foi a cliente cabisbaixa, infeliz e desenganada, como que arrependida e decepcionada com aquela consulta. Como se este advogado fora um “vidente”, intérprete de uma bola de cristal, sabendo que o príncipe já estaria hospedado com a sua anfitriã e com ânimo de ficarem juntos nas mesma casa deixada pelo falecido, em companhia dos filhos, de uma hora para outra. E nunca mais nem nos falamos nem nos vimos. E o mundo continuou a girar.

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Até que um dia... até que um dia... nos casuais da vida, encontrei-me com aquela viúva, agora de fogo-baixo, quase sem fala. Um tipo que não queria dizer palavra. Mas... também pelo dever de ofício, esse mesmo ofício paralelo de um “vidente” expert em “gênios de lâmpada”. E perguntei pela figura. Aí a viúva soltou os cachorros!!! E caiu de adjetivos impublicáveis em cima do sujeito. O mínimo que disse é que ele era um “golpista profissional”; que já fez isso com outras mulheres; que era “psicótico mental”. E eu só confirmei, é como lhe disse: “a história não fecha”. Coisas de um “vidente” entendido em “gênios da lâmpada e príncipe encantado”.

Viegas é advogado e questiona o social
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