E então naquela cidade vivia um ermitão. Ermitões existiam nos desertos que viraram cidade e nos contos da Carochinha, mas esse era de verdade, em carne e osso e chinelo de dedo. Ermitão veio das bandas daquelas terras de um povo marcado pelo celibato; alheio à sexualidade, convivente com a solidão. Ermitão era assim, um sujeito pacato, com um pé fora deste mundo, um tipo mão fechada, esquisito, “canhenga”, desconfiado.
Vindo das encravas do sertão em chapadas de cerrado, trazendo consigo uma ponta de recurso – creiam – chegou à cidade e, em meio às casas imprensadas e vida agitada, acabou por plantar um milharal de riqueza, espaço e prosperidade. Prédios, aluguéis e até bancos e seguradoras eram seus inquilinos. Acreditem! Mas ainda assim o ermitão não comprava um ovo, nem um abano e vivia ali agasalhando-se à beira de parentes e arrastando chinelo de dedo.
O povo, sem jornal e sem tv, vivia malhando a vida do “pobre” ermitão. Chamavam-no de miserável, “canguino” e outros adjetivos da mesma eira. E ermitão lá, tirando de letra, em cima da fortuna que qual um milharal explodia aos olhos de todos – em casarios e prédios de três andares, quatro andares; agasalhando à beira dos seus; vivendo miseravelmente, sem comprar um abano, sem gastar com um ovo; sem um pinto para dar de comer e, como sempre, roupas surradas e arrastando o seu chinelo de dedo.
Ermitão, sem pai e sem mãe, sem mulher e sem filhos, tinha dois únicos irmãos, igualmente sertanejos, pessoas modestas, de vida regular que viviam ali à beira daquele resplandescente milharal de fortuna, com os quais, ora num, ora noutro, ermitão agasalhava-se e comia o prato feito que lhe entregavam nas mãos e que ermitão, por vezes, ainda comia em pé, conversando e andando para um lado e para outro. Esses mesmos familiares - herdeiros naturais e exclusivos daquele ente - cercavam-no a sete chaves; não queriam que ninguém dele se aproximasse, muitos menos mulheres de qualquer idade. De olho na fortuna, temiam que o dono do milharal se envolvesse com alguém, fizesse um bucho e... adeus herança.
E assim vivia o ermitão, dono de um milharal de riqueza na cidade e gado nas terras do sertão, sem saber a conta, tudo “eirado”, mas comendo no prato feito, em pé, casa alheia, andando para um lado e para o outro, cercado pelos dois herdeiros seus parentes e sem comprar um ovo ou um abano, roupa surrada e arrastando chinelo de dedo a vida inteira.
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Justo ali na cidade do ermitão, em milharal de fortuna, ali chegou um Fulano de Tal; um tremendo SALAFRÁRIO, metido a “industrial” de serraria, vindo das bandas do “Gó-iáis”, um sujeito que deu o cano só em todo o mundo e seu raimundo. Bacana, boa pinta, mulher bonita, óculos de intelectual, carrão para cima e para baixo, pinta de gente boa. Tudo fachada!!! E foi dando golpes na cidade; ora num, ora noutro e foi estendendo... estendendo... até que o seu repertório, seu raio de ação acabou. Tornou-se figura pública, rematada e carimbada em meio aos negócios da cidade e mais adiante. Que lá nada, SALAFRÁRIO viu onde tinha uma mina de ouro, justo nos guardados do ermitão, ele que, mesmo na cidade e dono de um milharal de riqueza, de um rebanho de gado “eirado” em realidade, vivia fora do mundo, roupa surrada, comendo em pé e arrastando chinelo de dedo.
SALAFRÁRIO mirou bem ou como diz o Cobra Mansa: “cubou”, tudo direitinho, arquitetou, planejou, armou o bote. Muito simples, até. Ermitão, dono de imóveis, salas e apartamentos, tudo maravilhoso no coração da cidade que viviam na malha do aluguel de especulação. Salafrário, então, alugou uma das salas no plano-terra, vitrine para tudo e para todos. E montou um “escritório de compra de gado”, com secretária, máquinas, telefone e ar condicionado. Tudo fachada!!! E pagava o aluguel correto, direitinho, antes mesmo do vencimento. Era a arapuca, o bote!
E foi ganhando a confiança e a simpatia do ermitão, este mesmo que por vezes ficava horas esquecidas, sentado no escritório de Salafrário, assistindo a “negócios”, compra e venda, operações financeiras; telefonemas de gente importante e outros tantos “rei da bota”, que por ali chegavam, puxando talões de cheque, botando chapéu sobre a mesa e negociando fortunas. Tudo fachada!!! E ermitão só vendo aquilo, longe de imaginar que esse papel de parede era uma arapuca em cima do matuto e “canguino”, dono do milharal e gado eirado.
Aí já com o cerco fechado, Ermitão rendido pelas “riquezas” e “negócios” e “honestidade” do seu inquilino - salafrário, então, jogou o bote. Propôs comprar uma partida de gado “eirado” do seu senhorio. O dono do milharal nem pensou duas vezes. Negócio fechado. Coisa de fim de semana. E lá se vai um “cheque voador”, cruzado, nominal, pagamento “à vista”.
Ermitão, chinelo no dedo, que não sabia o que fazer com dinheiro, olhava o cheque... olhava o cheque... e imaginava construir o seu terceiro ou quarto(?) prédio, bem ali no coração da urbe, dentro do milharal... e bota riqueza por cima de riqueza... Enquanto isso, do outro lado da BR, salafrário, óculos de intelectual, pinta de bacana, de posse daquela fortuna em “gado eirado” e já com o repertório-bandido, esgotado na cidade, pegou sua mulher bonita e tudo o que tinha. Anoiteceu e não amanheceu. E seguiu de volta, rumo ao seu “Gó-iáis”, de onde veio.
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* Viegas é o olhar do pássaro sobre o galho.
E questiona o social.
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