Era uma manhã ainda meio sombria destes tempos primaveris. O sol no horizonte ainda se espreguiçava, num exercício de alongamento, prometendo para logo mais ir chegando e chegar abrasando os seus súditos cá no chão, com o seu calor. Lá adiante - que me perdoe a natureza - um falso ipê-roxo, com suas flores arroxeadas sobre uma copa entre achatada e alongada. Digo falso porque o homem sentiu-se ao direito de bulir na essência natural, transformando um original num "genérico", segunda via. E então o que era um ipê-roxo com sua copa aluarada, virou uma copa "achatada e horizontalizada". E a flor que na origem é(ra) roxa, agora é "arroxeada". Quiçá por tudo isso e outros mais, o sol que decampa lá em cima neste tempo de primavera, ao cedo da manhã, daí a pouco chegue abrasando, torrando, queimando a vassalagem cá embaixo.
Sim, mas e daí? E daí que era manhã de primavera, quando ainda cedo vou chegando àquela repartição para mais um dia de rotina no meu trabalho em meio às lides da justiça. E de cara, adentrando o espaço da repartição, o que vejo? ELA, que jazia deitada ao primeiro degrau da escadaria de acesso, e ELE mais em baixo, ao lado, ainda no piso de bloquete. Ipê de flores arroxeadas e aquela cena dos dois ali ao chão, no acesso principal da repartição, logo chamaram-me a atenção.
ELA está inerte, imóvel, com um olhar apagado. Como se olhasse e não visse; indiferente a tudo e todos que passavam ao seu lado, traduzindo a nítida impressão de que ali estava arrasada, estropiada, desmoralizada, indigente, aos frangalhos em corpo de alma. Outras de passagem, tão fêmeas quanto ELA, em salto alto no "toc-toc-toc", como fazem madames insensíveis ao destrambelho que provocam com o seu salto-alto, passavam de nariz empinado, como se nada vissem. Sim, porque a vida tem dessas coisas. Enquanto isso, ELE ali ao lado, em frente, só um degrau mais embaixo, deitado ao chão, outro indigente - era o cúmplice e vilão daquela arrasada e desmoralizada, cujo olhar apagado e a certeza de que se fazia retalhada em dores era como se sentisse, ali, a mais infeliz das criaturas. Foi o quanto me permiti imaginar.
E quando vejo a cena - de um lado o ipê falsificado, de flores arroxeadas em sua copa horizontalizada e do outro, aquele CASAL, em silêncio, deitado ao chão, cúmplices e arrasados pelas vertentes da natureza sentindo que aquilo tudo mexeu comigo, logo imaginei: "vou ter serviço". Mais tarde, quando volto de passagem, vejo que ELA continua inerte e inerne e de olhar pagado, no mesmo lugar, na UTI do seu abandono. Tão indigente, como sempre. E ELE? Cadê? Pergunto-me. Logo o vejo mais adiante, já fora dos cancelos da repartição. Estava em pé; de olhos fixos na COMPANHEIRA. Tive a impressão de que o "machismo" o expulsara da sua vigília ali ao lado da parceira e mandou-o para o olho da rua. Notei o varão mesmo que também fustigado em dor física e moral, empurrado à separação da companheira, ali estava na ânsia do protesto - protesto dos fracos, dos oprimidos, indigentes e ofendidos. Assim era ele ali.
Duas semanas se passaram, mas para mim não passou nem a imagem daquele falsificado, "ipê da cidade" forjado e travestido, pelas mãos dos que fazem cá embaixo um sol abrasador lá em cima, nem a imagem daquele casal: ELA uma cadela no cio, arrasada em seu desvario, e ELE um cão parceiro, cúmplice, aproveitador e vadio. E esse é o serviço de quem disse: "vou ter serviço", ante à cena em mais UM DIA DE ROTINA...

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Periquitos na Mangueira - em tempos de sequidão
(texto apresentado no programa ARIMATÉRIA JÚNIOR - NATIVA/FM)

No chão que me viu nascer, de onde eu acabo de chegar - lá é alto verão; verão brabo, puxado, tempos difíceis, cacimbas que estão secas; outras que estão secando. Homens e mulheres carregando água à distância. Ou como diz o sertanejo: "é tempo de sequidão".
Na minha pequena reserva florestal, uma mangueira centenária, com seus pequenos frutos, ainda verdes, lá em cima. Os animais e pássaros da floresta sofrem nestes tempos de seca. Não há frutos. Lá em cima dessa mangueira centenária, porém, velhos fregueses de outrora e de sempre - um bando de nômades e aventureiros periquitos põe-se a galhar. Eles estão famintos à procura do que comer. É a lei da natureza e salve-se quem puder. De repente, aquele bando de periquitos famintos bate em revoada e lá se vão eles gralhando, fazendo zoada, para procurar lá adiante o que encontrar para lhes saciar o papo, a fome, nestes tempos de "sequidão".
Olhei então para aqueles periquitos, gralhando lá em cima da mangueira, sedentos, famintos, à caça do que encher o papo e depois eles mesmos voando e gralhando e fazendo zoada em retirada e então comparei aquilo tudo com estes cinzentos tempos de expedientes eleitoreiros, com tantos periquitos cá embaixo, gralhando, fazendo zoada, querendo encher o papo.
E aquela mangueira centenária com os seus frutos verdes, mirrados, lá em cima, neste tempos de "sequidão"?? Heim??!! Essa é a burra, o erário, são as prefeituras e Câmaras Municipais e as receitas do Município que despertam a cobiça, a usura, a posse e a caça dos fregueses de sempre - que são os periquitos - velhos ou novatos periquitos, donos de "sorrisos" fabricados e engarrafados, tapinhas nas costas - todos famintos, à procura de encher o papo nestes tempos de "sequidão" eleitoral.
"Sequidão" vírgula, para o grande bando de periquitos porque para outros tantos que roubaram, que passaram o rodo, que meteram a mão, que encheram o papo - esses agora deixam escorrer pelos dedos, ou como se diz - pelo ladrão - para voltar a sobrevoar a mangueira, seja no inverno ou no verão, ou ainda que nos tempos de "sequidão".

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"    Viegas é um questionador do social. Email: viegas.adv@ig.com.br