Para escrever este tema, eu fui buscar os idos da minha infância - dez, onze anos de idade. Em semelhante situação, muitos diriam que "comeu o pão que o diabo amassou". Eu, de minha parte,  posso dizer que aquele tempo foi um "piquenique" uma SORTE que a vida me deu - como, de SORTE, sobrevivem os gametas, que afinal somos todos nós. Ou como diria o meu pai: "Hoje tu chora, amanhã tu sorri". Num período da minha infância, entre os sete e onze anos de idade, numa OPORTUNIDADE DA VIDA, mandada pelo Senhor da Criação e então fui morar na casa de uns irmãos celibatários. Carcamanos. Lá, era osso duro de roer. Lá, moleque "mijava no caco", "acertava as contas" e "lia na cartilha". Foi uma trajetória e OPORTUNIDADE  das quais, sem o pecado do orgulho, me ufano.
A vida, naquele casario, regrada ao trabalho e à escolaridade; a ordem, a obediência e ao respeito - com licença;  por favor;  sim senhor; não senhora; verbo firme; olho no olho -  foi o berço da minha formação; do meu caráter. Uma ESCOLA E UMA LIÇÃO que pratico quase instintivamente. E, quando me dou conta, vejo que uma banda de mim vem de lá; que o ferro e fogo vem de lá; que mãos limpas fazem parte de lá.  Era um tempo em que "criança não pegava em dinheiro"; não tinha liberdade, nem intimidade com dinheiro. E, se porventura algum dinheirinho de um picolé  ou de um pão, doado por um tio ou um parente caísse em minhas mãos, eu teria que prestar contas em casa, ato contínuo chegasse. Aquele "tostão" ia para um caixa exclusivo para suprir eventuais necessidades. E assim tocava-se a vida. Era a lei. E ai de quem!...
Naquela época, na minha cidade-natal, havia um forte movimento quase diário de aviões "teco-teco" que faziam linha para a capital e vice-versa. É aqui onde começa o tema-enredo desta crônica. Pois bem, para conduzir as bagagens dos passageiros que viajavam via/aérea, os moleques daquele meu tempo, prestavam-se ao serviço. E ganhavam, algo como dois ou três reais (em moeda de hoje), para conduzir mala, saco, caixa  e outros pesos. E o moleque fazia aquilo cheio de vida. Brigava, até.
Eu que morava em "casa alheia", não tinha nem poderia ter espaço para tal serviço, porque o regime era duro, as ordens eram severas e o ambiente fechado. Sem prévia permissão para tal empreitada, nem pensar! E ai de quem! Certa feita, nos casuais da vida, quando dei por mim, estava em pleno aeroporto,  quando o teco-teco ali chegou,  bonitão, sobranceiro, dominante, espanando vento para todos os lados -  justo ali na hora de carregar a mala e a oportunidade para uns trocados! Pensei.
E a "curriola" ali, em cima, esmurrando, chutando, disputando a bagagem. E eu lá, pelo meio, doidinho pra pegar uma. Até que pintou um "carreto" pra levar lá no porto, algo como três quilômetros de distância, no esticadão da rua, lá no extremo da cidade. Aí... o que aconteceu? Os moleques maiores e mais fortes, encheram-me de "cascudos" e "cocorotes" e tomaram-me a bagagem e a chance. E eu que por um instante imaginei que ia carregá-la até o porto, fiquei a ver navios.

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E hoje? Hoje quando a gente procura um moleque para o trabalho, tem que pensar sete vezes sete (vezes) sobre essa contratação. Aí o moleque pergunta: fazer o quê? Ganhar quanto? Que hora termina? E pode ser considerado "trabalho escravo"; "exploração infantil". "Desvio de conduta".  Pode ser denunciado  pelo 190; aí pode vir o delegado  da DPCA; pode vir um TCO;  pode perder a primariedade, os antecedentes; pode ser denunciado para um cabide chamado Conselho Tutelar e aí pode vir um juiz, um promotor, um oficial de justiça, intimação, condução coercitiva, processo criminal, indenização, transação penal, pagamento de cesta básica, prestação de serviço à comunidade; comparecimento mensal em Juízo, custas processuais, e toda uma desgraça em cima do dono da mala que  contratou o moleque para um servicinho.
Afinal como da lição e da regra,  moleque de hoje  tem mais é que brincar; "estudar", praticar o lazer, passear, se divertir, andar pelos shoppings, pintar o sete e ser colocado  e embalado numa rede debaixo de uma cantarola; "dorme neném que mamãe tem que fazer/ vai lavar, vai engomar/ camisinha prá você". E o que a gente ouve; é o que gente vê.  Por conta dessas e outras é que tinha três meninas assaltando de revólver em punho, na Vila Cafeteira - uma com 10, outra com 14 e outra com 15 aninhos. Duvi-dê-o-dó que isso acontecia no tempo em que crianças iam dar o duro nas oficinas de ferreiro, alfaiate e sapateiro e as meninas para corte e costura  e bordado e prendas domésticas. Ou para o curso de  datilografia. Mas isso era no tempo da roda quadrada!
Tempo da roda quadrada, mesmo, foi o meu que caí na roça aos seis anos de idade e sobrevivi para contar a estória, junto com mais  dez irmãos e todo o mundo, hoje, de rede armada mas cobrando escanteio e correndo para cabecear na pequena área. E matar um leão por dia. E olhe lá! Leões, estão protegidos pela América, governanta do planeta. E nem em circo não existem mais. Foram proibidos 500 anos depois.
Falar nisso, faz tempo, indicado por uma diretora-escolar, fui procurar um moleque na periferia. Imagine onde? Nos borogodós da CAEMA, numa central de violência e baixa prostituição, do tráfico e uso de droga, num ambiente  alagadiço, inóspito e insalubre.  Identifiquei-me; esclareci as pretensões.  Queria dar pequena ocupação e recompensa. Falei com a avó do candidato à "carregador da mala". Tu que ir, menino? Interrogou a avó com todos os pulmões, num gesto que amedrontou tanto a mim e imagine quanto ao moleque, seu neto.
E saí dali lembrando daquela manhã no aeroporto. E o "sonho" em três quilômetros com uma mala na cabeça e quem sabe dois ou três reais, em dinheiro de hoje, lembrei. E, na concorrência, me vi debaixo de cocorotes e cascudos. Vi que os tempos mudaram. Vi que o negócio é bolsa-escola que eu não conheci. É boia na escola que eu não conheci. Vi que o negócio é vadiar - vadiar que também não conheci. Vi também a OPORTUNIDADE que a vida me deu entre os cocorotes e o  sonho de carregar a mala...

* Viegas é advogado e questiona o social.