Desde moleque que a rua me desperta, ainda que via do subconsciente ou... instintivamente. Por que, não sei. Não sei o porquê. A primeira noção que tive de uma "rua" era o pequeno terreiro da casa paterna - primeira e segunda moradas. Molecada lá dentro, fazendo "zuada" - pedindo, querendo, bagunçando e então mamãe mandava a gente: "vão brincar na rua". Então era no descampado do terreiro que a gente descontava as nossas vadiagens e, por conta disso, mamãe descansava.
Depois, mal saído dos cueiros, sete anos, lá vou eu morar na VILA. Fiquei embasbacado! As ruas, diferentes, eram esticadões em linha reta, digamos - com casas ligadas umas às outras, no retão, na beira da rua. Eu, que tinha o terreiro como "rua", lá vou eu estranhando a nova concepção de rua. E então, a partir daí, a noção de rua mudou totalmente, na minha cabeça.
Aos onze anos, quando fui estudar na CIDADE, a rua era um bicho de sete cabeças para os meus pais lá no mato; tinham medo de eu "atravessar a pista" e igualmente medo de eu me "perder" pelas ruas e não encontrar o caminho de volta. O tempo foi passando, as águas correndo e as ruas da CIDADE tornaram-se uma rotina, um quotidiano natural que driblava e tirava de letra!
Ainda nos tempos de colegial, volta e meia eu ouvia uma conotação sobre a rua: Fulano perdeu o emprego e foi para o olho da rua. A filha da vizinha deu com os burro n'água, o pai expulsou e mandou ela pra rua. Sicrano é um desocupado, é moleque de rua. Dona Sinhora não tem o que fazer e vive na porta da rua. Lôrinha? Essa é mulher de rua! E, para completar: "tem gente que vive na porta da rua". E assim, com o tempo, a "rua" foi construindo um imaginário na minha mente. Agora, novamente, sobre outra dimensão a rua volta à minha mente.
Em verdade, em verdade, nunca tive maior intimidade ou convívio com a/s ruas. Sempre vi que a rua é uma central de perversidades; de desvios; de violência, inclusive. Por isso tenho restrição à rua do ponto de vista dessa forçada convergência do social. Na rua tem ladrão, tem assaltantes; desocupados; tem drogados; tem homicidas; tem baderneiro. Na rua tem de tudo. E agora com o trânsito em meio às bicicletas, triciclos, automóveis, caminhões, ônibus, motocicleta, carroça, cavalo, cachorro, carinho de mão, transeuntes e o raio que o parta - que fazem da rua um terreiro do vapor e do pavor. E cada qual por si, porque a rua virou uma onda selvagem em cima do asfalto.
Recentemente, nas minhas andanças pela beira-rio, e vendo ali homens e mulheres que dormem ao relento, chamados pelo vulgo como "gente de rua", parei para refletir sobre a rua, sobre a vida na rua; sobre a barra pesada e cruel e desigual que é ser morador de rua. De saída vejo um sujeito, de mediana idade - tem cara de novato na cidade; aspecto vivo de portador de hanseníase. Vive bêbado. Anda só e fala só, não tem com quem falar nem a quem se aproximar. Seja noite, seja dia, perambula por aí... pelas ruas da vida. Aquele outro eu o vi pela primeira vez numa cavalgada, dessa que as ruas viram um lixão. Ainda estava inteiro, disposto e querendo se enturmar. Na rua, como sempre, agora doente, tem passos lentos, vive lamuriando-se da vida e cata nada ao amanhecer. Volta e meia veste-se na esportiva, na boa.
Ao lado de um daqueles quiosques da "praça de alimentação", moradores de rua amontoam-se no mesmo relento para dormir. Maria C. com o seu homem; aquela outra "pidona" com o seu; aquela magricela "catadeira" fica sozinha. E aquela outra também com o seu. Brigam, correm um atrás do outro, perturbam, insultam-se, afrontam-se, ofendem-se, aprontam e acabam juntos no mesmo lugar. E, mesmo que a rua seja um universo do tamanho do mundo, acostumados que estão àquele ponto - ou é ali ou é ali.
E a reflexão que fazia e faço sobre a rua, fico vendo então que a rua não é só essa central do negativo e da perversidade, nem tampouco o leito dos sem teto nem o motel ou o mictório dos desajustados. Não! Isso não! A rua também é uma oportunidade; fonte de especulação; um espaço para muitos que dela vivem a tirar proveito ou dela fazem objeto de sua exploração.
Imagine-se, por exemplo, esta Imperatriz de todos nós. Muita gente tira partido e explora as ruas, as praças, os lugares estratégicos, as portas de bancos, adjacências do serviço público, o eixo-centro comercial, a rua principal - tudo dentro de uma área do metro quadro mais caro por estas bandas do planeta. E fazem da rua uma central de exploração; de uso diário e meio de vida. E aí vendem milho, frutas, verduras, confecções, revistas; brinquedos; sorvete, picolé; coco-da-praia, doces, panelada, espetinhos. Meio mundo de bugigangas "made in China" e "la Paraguai" e tudo o mais. E eu fico vendo esse cabresto solto; essa cidade sem dono, essa terra sem lei.
Pelas ruas da vida por aí, o abuso não tem limites: espalham-se mesas e cadeiras nas calçadas para esticar o bar, a lanchonete, a cerveja e a cachaça. E tome som de carro! E faz-se banheiros improvisados, na beira da rua, na cara da rua. Açougues saem dos seus cubículos e estendem-se carnes, toucinho e bofe seco no espaço da rua. E eu fico vendo o cabresto solto, essa cidade sem dono, essa terra sem lei. Uma ZORRA TOTAL!
As nossas praças - lugares públicos tanto quanto nossas ruas, essas então são infinitamente varejadas. Prestam-se para o mictório dos notívagos e irresponsáveis; servem ao contumaz e indisfarçado uso de drogas; prestam-se ao leito do sexo e à saga dos mal-feitores, além de tantas outras perversidades como numa terra sem lei. Não faz muito, a beira-rio, cobiçadíssimo espaço público, serviu até para um circo particular, cedido pela Prefeitura. E assim caminha a humanidade pelas ruas e praças por aí... que, apesar de tantos desvios, ainda tem gente que delas fazem um espaço de sobrevivência ainda que sofrida, mas honesta e responsável. É o quanto observo nestes... CAMINHOS POR ONDE ANDEI.

                                     * Viegas questiona o social.