Caminhar e correr na orla da Beira-Rio é um exercício que exige disciplina, renúncia, determinação. Logicamente que ninguém é obrigado a nada, mas se o viandante não tiver determinação e renúncia, a tentação pela interrupção e o abandono do exercício está sempre presente. O outro lado dessa moeda é que o exercício frequente e constante, em caminhada ou em corrida, rende ao indivíduo exercente um "plus" de condicionamento físico e psicológico - até porque "mens sana in corpore sano".
Na Beira-Rio, nas caminhadas  do amanhecer ou do anoitecer -  eu que estou ora numa ora noutra - aquilo ali é um terreno que nos permite ver raias e marcas do social. O meio social na Beira-Rio é qual uma pedra com várias facetas. Tem um lado amargo; a banda sociável; o quotidiano da vida alheia; passagens diversas que formam a grande aquarela multicor que é a rotina do amanhecer ou do anoitecer na viandanças da Beira-Rio.
Ainda é madrugada, quando saio para caminhar. No portão de saída faço o sinal da cruz e, em passos esticados, tomo a reta da minha Manoel Bandeira, no sentido contramão. Na Praça que foi Castelo Branco, depois Praça da Cultura, aquilo ali é um inferno que atravessa a noite inteira. Cachaceria ainda aberta, restança de bêbados e rufiões - homens e mulheres. Som de carro nas alturas, sempre. Coisas de uma terra sem lei. E eu me pergunto sobre o estorvo a que se submete aquela vizinhança.
Agora eu estou no descampadão da Beira-Rio. Seu PV é um madurão solitário. Caminha sozinho e não dá um bom dia para seu ninguém. Interrompe a caminhada e faz ginástica. Ele mesmo inventa os seus exercícios. Algo como um faz-de-conta. Joga a perna para um lado, para frente e para trás, balança a cabeça, retorce o bucho e dá a impressão de que "dorme" quando faz os seus exercícios, tal a leniência, um quase espreguiçamento que esboça durante as suas flexões, seus movimentos. Seu PV por si só é uma "graça", como sem graça são os seus exercícios.
Em um daquele boxes da "praça de alimentação", aquilo em muitas noites, lembra um lixão; um depósito de ser humano. Descalças e descamisados se juntam na noite e dormem ali ao relento, sobrepostos uns aos outros. Ali mesmo fazem suas práticas fisiológicas; outros que praticam sexo, até. Ali mesmo usam drogas na maior escancara. O local é de uma fedentina lastimável. Quando chega a noite, o local dá acesso à cozinha do box de alimentação. E eu fico vendo essa aberração. Esse contraste horroroso no escurinho dos madrugadões entre a fedentina de gente amontoada na noite e a cozinha lá dentro quando o Sol começa a se esconder.
Ainda é madrugada quando chego na Beira-Rio. Por vezes ainda submetida às restanças de uma boate - uma TEXANA de tal - que tem por ali e que costuma amanhecer, por vezes, só no asco da bebedeira mas... por vezes, é um caso de polícia. Ali tem de tudo e tem pra todos. Houve um tempo - penso eu - que ali era coisa de patricinhas, hackers, "meninas" e companhia limitada. A periferia que também é gente e porque ninguém é de ferro, engatou também. Tem de tudo, para todos. E tudo chapadão, tresnoitado, amanhecido. Por isso que se diz por aí que aí que "c..ara e bêbado não tem dono".
Madrugada dessas, um casal de TEXANOS. Ele chapado ela "chapada", tresnoitados e amanhecidos, estavam numa breve discussão. Ele sentindo-se preterido, ela a dona da situação. A certa altura ela faz uma declaração quanto ao uso e concessões do seu  corpo. Aliás um corpão bem desenhado, ancas largas! Eu que caminhava a passos largos, pelo que ela disse, fiquei com vergonha por ela. A vergonha tem dessas coisas. Ainda esta semana, já na quase penumbra do anoitecer, um grupão estava reunido, sentado ao chão. E puxavam um "baseado" no coletivo, em plena confraria. E um outro sozinho, acendia mais um. E, nessa libertinagem, lembrei-me daquele tema que escrevi aqui, quando eu dizia: "ou  Holanda veio para o Brasil, ou o Brasil foi para a Holanda". Lembra?
Tarde dessas, quando o sol caía para as bandas do Bico do Papagaio, no Tocantins, ali está sobre a grama um jovem casal de namorados. Dois fedelhos 14, 15 anos. Ambos uniformizados. Sentados sobre a grama em declive. Exibiam à flor da pele um gesto de "romantismo", como das antigas. Mas de um exalo proposital e irreverente quais os navegadores da história, dispostos a descobrir o "caminho marítimo para as Índias". Foi quando o questionador do social, de passagem viu a cena.
Na segunda volta, o casal de ninfetes estava lá, no mesmo lugar, sem se importar com o mundo em volta. Romantismo nas alturas. E nem aí para mais nada, nem para mais ninguém. E então lembrei-me daquele filme do meu tempo colegial: "Matemática zero, amor dez". Lembra? Na terceira volta, era a moça deitada ao chão em decúbito dorsal (de cara pra cima) e o moleque por cima dela, ao vivo e em cores - indiferentes e nem aí para o mundo em volta. E segui em frente tecendo tudo aquilo na mente.
E quando concluo a 5ª volta, já era quase sete da noite. E lá vem o casalzinho, abraçado, entrelaçado, obviamente  ao rumo de casa. Aí novamente eu me questionei: e quando peguntarem para papai e mamãe cadê as suas crias, certamente que eles responderão "estão para a escola". Ou, quem sabe a ninfeta já tenha tirado um álibi com sua mamãe: "vou estudar com uma colega". E mamãe acredita. E eu também.
Agora cá pra nós: aquele azeite, aquele óleo; aquelas babatas fritas; aqueles cocos servidos, aqueles chicletes no chão do passeio público; aquela água servida e jogada ao chão; aquelas guloseimas de tanta gordura e açúcar; aquele cocô de cavalo no passeio, assim como aqueles que se deitam amontoados e outros que fumam o seu baseado - aquilo é um caso de saúde pública. Quer dizer: é um caso de polícia.

                                   *  Viegas questiona o social.