Deveria ser final dos anos 90 e quando chego em casa, observo que um novato vizinho ali ao lado exercia trabalhos de “capotaria”. Era capoteiro. Ficamos em singulares bom-dia, boa-tarde. Tempos depois, esse mesmo senhor mudou-se com a sua oficina e estabeleceu-sem em frente ao nosso escritório. Despertou-me aquela coincidência e lá se vão outros bom-dia, boa-tarde. E quando então já não éramos mais vizinhos e ele bem distante, o tempo cuidou da nossa aproximação.
Fui ver então que aquele senhor, que atendia por DIQUINHO, era um cara versátil, simpático, livro-aberto, extrovertido, bem-humorado, sem frescura. E tornamo-nos bons amigos, a ponto de que, a cada lua que mexia com a minha cabeça, eu frequentava a sua oficina de capotaria no Entroncamento, só para beber água, jogar conversa fora, falar bobagens. Nessa onda, tornei-me então amigo e mistura de todos os filhos do DIQUINHO que com ele trabalhavam na capotaria. Uns quatro.
E achava interessante e tranquila a integração do trabalho em família. Era como se todos ali fossem irmãos, meio-a-meio e pau-a-pau. Ninguém mandava em ninguém, ninguém ralhava com ninguém; ninguém discutia com ninguém. E cada um sabia e cuidava do seu afazer. Reinava paz e sossego naquele ambiente de trabalho com todos sempre bem humorados e firmes no batente. Não havia concorrência, nem reclamação, nem disputa, nem “mandados”. Confesso que sentia-me tocado por uma clima natural que brotava daquele labor em família. E todos na mesma e única direção, simultâneos à liderança do pai e do irmão mais velho.
E tudo ali falava de mim e para mim. E quando eu “pintava” por lá, sentia-me ora como se estivesse no quintal da minha casa – ora como se um moleque num parque de diversão, com todos os brinquedos ao meu alcance. Punha apelidos, pegava nas ferramentas, bagunçava, fazia perguntas, carregava objetos, falava alto, abria geladeira, mandava em tudo e em todos e via um DIQUINHO sorridente, alegre, versátil, prosa livre – como sentia também a estima natural de seus quatro filhos, ali em tempo inteiro, rente no batente.
DIQUINHIO me contava histórias que eu guardo na memória e sei de cor. Falava da sua vida, da sua família, dos seus trabalhos, das suas “aventuras” por aí e, brincalhão que o era, chegou a me dizer que trabalhou na capotaria de uma montadora, em São Paulo. O cara trabalhava tão bem na sua arte de capoteiro que eu acreditei! E depois, quando me disse que era “brincadeira”, até hoje eu não sei o que é e o que não é verdadeiro.
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Diquinho, com sua marotice proposital, me contava estórias fantásticas de sua natal São Domingos, “lá no Japão”, que eu ficava de “queixa caído”. Numa delas me contou a dupla história do BOI DE TIÃO. É que um certo boi de um certo TIÃO caiu dentro de um poço. Aí foi meio mundo de gente e de corda e de apetrechos para retirar o bicho do fundo do poço. Retirado boi e o bicho enfezado, lá... Estando a salvo, o povo ficou em volta na chacota, com dó do coitado, passando a mão, admirando. E o boi enfezado, lá. Foi quando numa dessas o boi levantou e encarou aquela gente que o salvou. Metia os pés, partia pra cima, atacava, berrava, queria guerra. O caso ficou no anedotário popular.
O mundo deu algumas voltas. E novamente O BOI DE TIÃO volta à cena, agora na pele de um “cidadão”. Seguinte: o sujeito combinou com uma mulher que tinha marido de darem um “pulo de cerca” naquela noite. O sujeito entraria por um bananal ao fundo do quintal da casa e de lá daria um solitário e estridente assovio. Era a senha do encontro! Tudo certo e na hora marcada, não imaginariam que o capeta estava enfiado nessa, até na tampa. Ora se tava!
A poucos passos do solitário assovio, andando pelo bananal, num pé e noutro, em estado de terrível expectativa, no ermo e ao desaviso do soturno do bananal fechado, eis que senão quando... ... plat kabum, trup-zup... thahahahahahaha... O homem caía dentro de um poço! Olha o sufoco! Olha o desespero! E o diabo pelo meio. E aí o que era silêncio e segredo a sete chaves com o casal cheio de amor pra dar, passou a ser um grito de pavor e desespero que ecoou na noite pedindo socorro. Socooooooorro!!!
Até que justo o marido, desconfiado, correu ao local. E aí foi meio mundo de gente e lanternas, lampiões e cordas e parafernália para salvar aquele “cidadão” que, ao desvão do soturno da noite, encontrava-se ao fundo do poço - arquejante, resfolegado, em calafrio e cheio de hematomas e outros desvarios pelo resto do corpo. E quando tiraram o homem do fundo do poço, com meio mundo de gente ali em volta, vem-lhe uma saraivada de perguntas: Como? Por quê? Desde quando? O que estaria ali fazendo? O que pretendia fazer? Por que àquela hora? E o homem ali... mal-encarado... enfezado, decepcionado, humilhado em suas tamancas, pê da vida. Enfezado. E o povo perguntando, encarando. E homem retrancado, enfezado...
A certa altura, o “cidadão” tomou um facão de um dos circunstantes e declarou que nada tinha a declarar, muito menos a responder. E queria brigar e queria bater. Enfim, repetiu tal e qual a história do BOI DE TIÃO. Pronto, ficou para todo o sempre conhecido como BOI DE TIÃO. E como não resistiu às provocações e tentações do seu povo, o “cidadão” deixou a sua terra para sempre e mudou-se sabe para onde? Para as terras do Riacho do Cacau, Bacuri e Capivara... Tocantins.
E ainda hoje triste daquele que chamar aquele cidadão de “BOI DE TIÃO”. O cara logo fica enfezado, parte pra cima; quer brigar; promete matar. É meio mundo de confusão. E eu aqui, na contramão da história, lembrando do amigo DIQUINHO, que se foi para sempre. E eu, na troça, chamava-o de “BOI DE TIÃO”. E a gente caía na risada, na bagunça, imaginando e redesenhando a presepada. Descansa em paz, meu caro DIQUINHO, descansa em paz.
* Viegas é o olhar do pássaro sobre o galho. E questiona o social. Email: viegas.adv@ig.com.br
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