Venho de um lugar da minha infância em que a crendice, a superstição, qual a água das cheias "encobre um homem de mão para cima". Os relatos eram tantos e eu, moleque, caminhos ermos, casas distantes, veredas sombrias, matagal solitário, morria de medo. "Currupiro" era o ente da minha grande tormenta. Contavam estórias tenebrosas de "Currupiro". Fazia gente perder-se no mato; açoitava cachorros; punha as vítimas no "olho do espinheiro", provocava dores de cabeça...
Zé Bicudo - "diziam todos por uma boca só" virava porco nas noites, nas encruzilhadas. Ele que morreu com "cento e tantos anos", faz mais de dez anos, até hoje é lenda viva e cultivada naquele meu lugar. Citam nomes, fatos, pessoas, lugares, detalhes e depoimentos em viva voz do velho e estranho e solitário ZÉ BICUDO. Ele "cercava" as pessoas, punha pra correr; o intento era morder.
Joana da Mangueira, uma despachada roceira e solteirona que o diga. Era fim de tarde - "detardinha" - quando Zé da Gorda apareceu por ali com jeito de quem queria xodó. Ao invés disso, Joana o enxotou. Ah! Pra quê?! Zé Bicudo voltou em seguida em forma de ventaria e de um bicho querendo jogar a casa abaixo, deixando Joana em pavor e desespero, sob desvairados gritos de "eu sei que é tu, Zé Bicudo", para em seguida abandonar a sua casa e aquela encruzilhada, onde morava. Essa eu vi e ouvi da própria Joana da Mangueira em carne e osso.
Histórias de dinheiro enterrado; de sonhos; de lugares "visagentos" de gente que desenterrou dinheiro - isso corria à solta. Na Tapera de Bambá, em terras do Cipó de Mundoca, ali não tinha hora. Visagens e marmotas aconteciam às claras do dia, até. O lugar era ermo, o caminho coberto pelas sombra de antigos arvoredos e as estórias se multiplicavam. E quando falavam em Tapera de Bambá, dos circunstantes "o corro arrupiava". E isso eu vi e ouvi tanta vezes. Foi nesse meio a que nasci e me criei.
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SANTO EXPEDITO
É nesse terreiro de credos e superstições que entra SANTO EXPEDITO. "Santo Expedito" era pau pra toda obra. Um cavalo perdido; um dinheiro esquecido; um crédito não recebido; um amor escondido ou não correspondido - era tudo pra Santo Expedito a que se fazia o pedido. Denominava-se "promessa pra Santo Expedito". E o cumprimento era acender três palitos de fósforo, para o Santo. Mais tarde, também pude ver outra forma de agradecimento ao Santo: "dando três pulinhos".
Aos dez, onze anos, à beira da minha casa, havia um juçaral. Em tempos do fruto, de férias em casa, eu subia nas alturas e nas beiradas e o peso e o vento, em açoite, faziam da juçareira uma corda bamba, voluptuosa, apavorante na alturas! Um risco de vida e morte! Então eu, lá em cima, fazia promessa para Santo Expedito. Se chegasse com vida e são lá embaixo, acenderia três palitos de fósforo para o Santo. E tantas vezes e por obra e graça a outros tantos pedidos, acendi palitos de fósforos para Santo Expedito. E assim vi tantos outros do meu tempo fazendo o mesmo...
Mais tarde, já morando na cidade grande, chão de asfalto, fiquei a saber que Santo Expedito é o padroeiro dos endividados, das causas difíceis e dos aflitos e traz no seu currículo a história de um santo guerreiro e também é certo que, ao longo de tantos anos e mais anos, tenho visto publicações na imprensa escrita da Oração a Santo Expedido em regozijo aos milagres e atendimentos a pedidos, atribuídos ao Santo. Ainda que seja uma lenda, ainda que seja uma superstição, o que não se pode esconder é a fé declarada e escancarada que pessoas do povo atribuem e despertam em Santo Expedito. Estão aí as publicações, a vida real.
Minha mulher, por exemplo, é uma contumaz recorrente às bênçãos e prodígios de Santo Expedito. Se procurar, se não encontrar alguma coisa, se tiver algo perdido - logo recorre a Santo Expedito. E o resultado é extenuante e incrível! Tenho visto isso ao longo dos anos!
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E como um enredo puxa outro, lembrei-me que o meu velho Antônio de Inez contava uma história. Dizia que quanto terminou o dilúvio, as pessoas iam a Noé e lhe pediam um pedaço do pau da barca que era um santo remédio e servia para tudo e para todos. Até que um dia, de pedacinho em pedacinho, "o pau da barca" acabou... Mas aí veio um homem, chorou o seu drama e pediu-lhe um pedaço do "pau da barca". Noé explicou-lhe a extinção. O homem relutou, insistiu a que procurasse, tentasse par ver se encontrava algum resíduo, ao menos.
Noé foi lá, fez a simulação e trouxe-lhe um velho pedaço de madeira qualquer. Dias depois, o homem volta a Noé para confirma-lhe a boa-nova. Estava curado! Então, Noé e toda a humanidade chegaram a uma santa conclusão: "mais vale a fé do que pau da barca"! Santo Expedito que o diga.
* Viegas é advogado e questiona o social. E-mail: viegas.adv@ig.com.br
Edição Nº 14845
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