Desconfio que estou vivendo um deserto do meu lado-escriba. Por vezes, nas madrugadas ou nas tardes de domingo, tento exercitar a mente, mas a ideia não flui, o texto não sai. Nem as imagens e passagens do dia-a-dia me despertam. Republico aqui MÃE NONATA, um tema da vida real a que revivo em versão ampliada.

“MÃE NONATA”

Naqueles sertões, tocados a roça de sobrevivência, cargas de cangalhas e luz de lamparinas durante a noite, eis que uma festa por ali de tempos em tempos sacudia aquela gente. Grande maioria da qual analfabeta, outros que assinavam o nome. Todos de mãos calejadas. Era assim no meu sertão. E quando noticiava-se uma festa – fosse uma dança, uma noitada de bumba-boi, um Baile de São Gonçalo, ou a festa da padroeira, as pessoas “se arrumavam” pra fazer bonito.
Mulheres e homens “refeitos”; jovens mulheres, “moças intituladas” ou em “capa de moça”, assim como rapazes e todos enfim – todos roceiros por falta de escola, espaço e opção – logo se assanhavam e se preparavam para a festa. De qualquer forma, no entanto, em dia de festa, “roupa boa” era o que não faltava. Afinal, vaidade e luxúria são próprias do gênero animal. Para as moças-donzelas e outras supostamente casadoiras ou tendentes ao amasiamento e outras “encubadas” em casa de pai e mãe, precisavam de uma “companha”, pois que não poderiam ir sozinhas em léguas a fio em caminhos de mato, tampouco ficarem igualmente só a noite inteira em terreiro ou salões de festa.
É bem aí que entra em cena a sempre lembrada; a eterna MÃE NONATA – uma festeira e mais-que-presente dama-de-companhia; uma espontânea e indispensável tutora daquela mulherada assanhada para dias de festa, uma vetusta senhora de especial prestação de serviço social naquela comunidade de “moças” da roça. De sorte assim que, em dias de festa, um verdadeiro “batalhão” de mulheres eram seguidas e acompanhadas por MÃE NONATA que, aos olhos de pais ou avós que ficaram em casa, estavam protegidas e resguardadas pela confiança e idoneidade de MÃE NONATA. Tal como se aquela mais-que-sexagenária fosse ali um férreo e intransponível cinto de castidade e honradez. (...)
E lá se vai MÃE NONATA, ainda cedo da tarde, em léguas sem fim, liderando um batalhão de mulheres, rumo às festas, cada uma conduzindo a sua trouxa de “roupas de muda”. E assim como o mel atrai moscas, o “batalhão” da mulherio de Mãe Nonata também atraía rapazes, pretendentes e outros entrujados que compunham a caravana de festeiros – todos com uma aparente subserviência e pseudo-respeito por aquela  tutora de ocasião. Daí que era bênção na chegada, como gesto de respeito e obediência. E daí por diante, Mãe Nonata pra cá, Mãe Nonata pra lá, fazendo desta um mimo do coletivo. Pelo menos na saída do terreiro de casa.
A esse tempo, a velha NONATA já era uma roceira cansada do sol-a-sol, uma mais-que-sexagenária de cabelos esbranquiçados, voz enrouquecida, pequena estatura, encurvada e ainda que fadada com o tempo, nunca perdeu o faro nem o cachimbo, nem o caminho da festa. E lá por volta das seis da tarde, sete da noite, aquele “batalhão” chegava ao terreiro da festança, sob o olhar de regozijo e satisfação do anfitrião. E todos cuidavam de tomar um banho-de-poço, lavar os pés – estes que enfurnavam-se em sofrimento metidos em sapatos e chinelos ressecados ou nunca vistos. E trocar de roupa. E “botar perfume” e brilhantina nos cabelos. E um bombom de hortelã que era pra dar o “tchannn”. E logo-logo MÃE NONATA aboletava-se a um canto, puxava o seu velho e encardido cachimbo. E lá se vão cachimbadas e baforadas pelos ares. Era MÃE NONATA no seu ofício e reinado de conduzir a mulherada – fossem moças, “encubadas”, como que a vigiá-las nos terreiros de festa, em ida e volta.
E lá estava cedo da noite, MÃE NONATA, aboletada a um canto e arrodeada de suas donzelas, senão de grande parte delas, todas sob sua vigília e “companha”. Mas como ninguém é de ferro e como o destino já estava traçado, eis que mais tarde, quando a música já “troava no barracão”, logo aparecia um roceiro esperto para desviar uma pupila da velha NONATA. E oferecia-lhe um mimo: um bolo, um doce, um suspiro, um coração (doces especiais). E MÃE NONATA, traída em sua gestão social pela gula e pelo assédio dos pretendentes, deixava-se corromper e recebia doces e pedaços de bolo, deixando suas protegidas ao sabor da própria volúpia e de estranhos na noite. As pupilas, no entanto, de tempo em tempo, como quem “tira carta de seguro”, vinham como que “descansar”, ali nas cercanias de MÃE NONATA. Era o reinado, enquanto MÃE NONATA, aos poucos, enchia de mimos o seu bisaco.
Mais tarde, porém, enquanto MÃE NONATA, recostada na parede de fora, de cócoras e sozinha, cochilava com o seu cachimbo apagado à boca, suas protegidas esbaldavam-se em tudo a que tinham direito, fosse no barracão-de-dança, fosse mato adentro; debaixo daquele antigo mangal ou no soturno da casa-de-farinha. Afinal, estrepolias e aventuras faziam parte da “festa”. Era, então, a própria “festa”. No dia seguinte, festa acabada, corpos extenuados de tudo o quanto aconteceu na noite, lá pelas seis da manhã, MÃE NONATA retoma o caminho de volta, à frente do seu “batalhão”. A caminho, porém, o mulherio, em gestos e palavras cifradas, contam umas para as outras até o limite do possível, as vantagens e agonia de tudo o quanto lhes aconteceu naquela noite de festa, ainda que por trás da casa, debaixo do mangal, nos desvãos de mato adentro, na capoeira ou no soturno da casa de farinha. E ainda exibem marcas e manchas do envolvimento a que se deixaram envolver.
MÃE NONATA, no entanto e como sempre, NADA SABE. E no estirão do caminho, vai deixando suas tuteladas na porta da casa paterna, tal como as recebera – para o descanso e agrado de pai e mãe. E na próxima festa, MÃE NONATA novamente estará à frente do seu “batalhão” de mulheres, ora com o seu cachimbo na boca, ora de cócoras - sem perder de vista o bisaco que se enche de mimos, em inocente e brejeiro expediente de corrupção. Meses depois, certamente nasceram outros mais – frutos dessas levas e aventuras. E ainda que dela ouvirem as novas crias, porém, só terão doces notícias de MÃE NONATA.

Viegas é advogado e questiona o social.
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