Cira de Mundico era filha de Mundico do Sertão - o senhor daquela imensidão de terras, negociante fechado, dinheiros guardados, um homem reservado, de conversa firme e aprumada; um homem rico para os padrões daquele meu lugar. CIRA era a "mais velha" daquela prole, também ensinava na escola do pai, em tempos de tabuada, palmatória, "traslado" e castigo. Ensino que ia té o "QUARTO LIVRO".
Quis a sorte e o destino, CIRA tornou-se minha madrinha. Madrinha de Batismo; isso lá pelos meus dois anos de idade. Conta minha mãe que numa certa "mexição de farinha", no terreiro de Mundico do Sertão (pai de CIRA), este filho, já nos primeiros passos, fugiu dos olhos maternos e foi-se aventurar pelo mato. Lá, mastigou uma tal folha de "aninga" que por aqui chamam-na de "comigo ninguém pode". Um vegetal de folhas ácidas, venenosas. Mastigou e misturou-se com a "aninga" e aí foi um berreiro danado, sem fim, um corre-corre e muita aflição.
A jovem CIRA, aos 13 anos, um anjo ali e para sempre, acode e acolhe o traquina e tem-no em seus braços, em tudo fazendo para controlar a situação. Por vezes passava um melaço de açúcar nos lábios do moleque e pelo seu corpo, tais os estragos. E haja chororô. CIRA foi essa fada-madrinha, naquela dura ocasião e para sempre. ANTÔNIO DE INEZ, pai do moleque fustigado pela "aninga", vendo o desvelo e carinho daquela jovem-menina, acabou por convidá-la para o santo ofício de madrinha da criança.
Àquele meu tempo, ser convidado/a para madrinha ou padrinho de um filho era mais que uma honra, era um gesto de alta nobreza; ao passo que afilhado e padrinhos tinham respeito, estima e muita veneração recíproca entre si. Instituíam-se ali verdadeiros laços de família, inclusive entre compadres e comadres. De anotar ainda que a liberalidade de um convite para ser madrinha ou padrinho do filho era um rasgo de reserva íntima e a consagração de uma amizade que daí em diante guardaria fundos elos de amizade e respeito e para todo o sempre. Amém!
A jovem CIRA, aos 13 anos, ser convidada para MADRINHA daquele "atentado", estragado pela aninga, aquilo foi como uma bomba que explodiu no terreiro de Mundico do Sertão. Os pais da filha-convidada viram o gesto como um ato de apreço e boa fé, mas em princípio discordaram: a jovem-moça tinha apenas 13 anos! O certo é que, conversa vai, conversa vem, ponderações daqui e dali e ANTÔNIO DE INEZ interessado em pequenas porções de açúcar que a comadre-Cira poderia lhe propiciar, não abriu mão do convite. Finalmente venceu a maratona e CIRA tornou-se madrinha de "Clemente", esse cara que, afinal, sou eu (rsrsrsr rsrsrsr).
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Sempre tive implacável e inarredável estima pelos meus padrinhos. Raimundo de Doca, meu tio e padrinho, era o meu ídolo, meu amigão. Um cara incomparável. Dele guardo saudades infinitas; lembranças da sua voz, das nossas conversas, detalhes da gente. Faleceu ainda novo, mas ainda hoje eu "converso" com ele, canto junto com ele, brincamos, contamos histórias das nossas namoradas de um tempo. MADRINHA CIRA também partiu ainda cedo, na nossa vã imaginação pecadora, mas o CRIADOR sabe a hora de cada um - não cabe questionar. Padrinho RAIMUNDO é a saudade doída, indelével, apaixonada e terna. MADRINHA CIRA é aquela imagem que ficou. Eu a vejo em seu rosto e ouço a sua voz. Ainda hoje. E me vejo em sua casa naquelas conversas infindáveis, em final de semana, naquelas minhas férias primaveris.
Naquele meu tempo colegial primário... ginásio... ainda sem o primeiro emprego e ia passar as férias na casa paterna, naquelas encostas do meio do mato. Então, a certa altura das férias, como aliás já era do calendário, minha mãe dias antes me avisava: "No sábado, tu vais dormir na casa de tua madrinha". A esse ponto ela, a madrinha, já estava casada, de cujo marido em princípio eu tinha ciúmes doentios mas... depois... aceitei a realidade. Também chamava-o de "padrinho". PADRINHO TAURINO.
E assim, naquele sábado, lá pelas quatro da tarde, tomava banho, penteava o cabelo, vestia roupa limpa. E lá vou eu por aqueles caminhos sombrios, de casas distantes, rumo à casa de MADRINHA CIRA. Chegava lá: "Bênção Madrinha". Era uma festa! Capão gordo, arroz socado, farinha boa, água de pote, rede cheirosa, bolo gostoso, rede armada e tudo do bom e do melhor para este seu "primeiro afilhado". E haja conversas que se prolongavam noite a dentro à luz da lamparina.
E então eu contava para minha Madrinha as peripécias do internato; falava das minhas notas; das minhas aventuras colegiais. Lembro-me que eu era um tremendo "língua solta". A conversa ia até às tantas. Aí vinha o dia seguinte, o domingo, e aquela mesa que parecia um banquete; tudo do bom e do melhor para aquele seu "primeiro afilhado"; uma moeda especial como sempre foi. E lá pelas quatro da tarde, daquele domingo, eu me despedia da madrinha e voltava para a casa materna, carregado de saudade, de lembranças e dos mimos com que madrinha me obsequiava.
A roda da vida girou e MADRINHA CIRA despediu-se deste chão, no parto de seu terceiro filho, sobrevivente do trauma. Dela, deixando-me uma saudade eterna que guardo com carinho, estima, gratidão e respeito. Até hoje (até hoje). Agora, quando acabo de construir o MEMORIAL de ANTÔNIO DE INEZ para perpetuar a memória do meu pranteado pai, lá está à frente, sobre a árvore, na entrada do portão, entre outras, uma placa em que se lê *MADRINHA CIRA de eterna saudade*. E, noutro lugar onde foi a sua casa, lá mesmo onde dormi tantas vezes, mandei edificar uma placa que diz: "NESTE LUGAR, MADRINHA CIRA viveu o amor e a PALAVRA".
" Viegas trabalha as suas origens e questiona o social. Email: viegas.adv@ig.com.br
Edição Nº 14552
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