O meu avô Doca Barros foi um homem que conheceu apenas as beiradas de sua casa e não andou por mais do que quatro ou cinco léguas fora do seu terreiro. Tinha uns poucos gados "pé duro" que os entregou à vaqueirice de um certo ZUZU que os vigiava em campos abertos, em terras do "Bacabá". E então, de tempos em tempos, "ir até aonde o ZUZU" era o caminho mais longo a que fazia. De resto outras ocupações que porventura exigissem um percurso, ele delegava a seus dois filhos: Tio Pedro e meu eterno e inesquecível Padrinho Raimundo.
Velho Doca era um "bucho cheio" por excelência, ele que trabalhou predestinado e que viveu a vida apenas de "olho no bucho". E tinha eira e paióis de milho, de arroz, de farinha, de feijão, de peixe-seco, de café. Sim, porque o meu avô tinha um cafezal à beira de casa. Um cafezal, um laranjal e um canavial. E tudo a seu redor era uma fartura só. Tinha até um rio, quase à beira de sua casa. Um rio que ele cuidava, zelava, domesticava: o Rio de Doca. Um ribeirão que enchia nos tempos de chuva e secava ao verão.
O meu velho DOCA sabia ler e, nessa saga, era "vidrado" nas façanhas de DONZELA TEODORA, Cego Aderaldo e Zé Pretinho E "Coco Verde de Melancia" da literatura de cordel - uma leitura a que aprendeu com o seu velho pai, o decano FABINHO DE BARROS, meu bisavô, que não o conheci e que, juntamente com o seu irmão Norato Barros, herdaram as terras do velho Fabinho de Barros que as dividiram meio-a-meio tão unidos e tão solidários e "carne com unha", como sempre foram. Eram as terras do LARANJAL, um nome que até hoje permanece, justo ali onde, como da tradição, ficou enterrado o meu umbigo e onde acabo de construir o "MEMORIAL DE ANTÔNIO DE INEZ", agora mesmo onde vou construir o MONUMENTO À DONA LOLA, para reverenciar a memória dos meus pranteados pais.
Aquele homem corpulento de sotaque sonoro e sublinhado, arrastado e exclusivo tanto quanto seu irmão Norato Barros - que mascava fumo; que caçava pra comer; que adestrava os seus cachorros de caça e dava-lhes ordens precisas e certeiras que eram cumpridas à risca; que adestrava jovens potros choto-duro, e transformava-os em marchadores "pisa-macio" - ele mesmo bom de boia e prato feito e bem feito, era um culteranista dos seus hábitos; palavra firme nos seus tratos. E me deixou lições e exemplo que até hoje eu guardo na memória e seu de cor. E esse canto eu já cantei incontáveis vezes nos CAMINHOS POR ONDEI porque as lições do meu avô se renovam sempre nas pegadas da vida - ora a que vejo, ora a ouço, ora a que enfrento.
Velho Doca costumava grifar e repetir os seus ditérios que eram verdadeiras lições de vida. E eu ali... "copiando" sem saber. Um deles dizia: "Filho criado, trabalho dobrado". Nem fui longe, nem andei tanto, nem corri, nem me esqueci. E logo vi! É o que a gente vê por aí, todos os dias. Enquanto criança, pequeno, o moleque está ali debaixo das asas de pai e mãe. Dá trabalho? Mas isso é um refresco. Mas quando cresce é aí que os problemas aparecem! Multiplicam-se! Muitos que se tornam homicidas, fugitivos, traficantes, ladrões, ganho fácil, viciados, desviados. Encarcerados. Vem daí o "... trabalho dobrado" da mais antiga lição do meu Velho Doca, ele mesmo que costumava dizer que "o espinho, de pequeno, traz a ponta". É o que a gente vê no exemplo, isto é, nas condutas dos próprios filhos e filhas ainda nos primeiros passos quando a gente já percebe as tendências... É a "ponta do espinho"...
Dizia o meu velho DOCA que "quem cria filhos dos outros cria taca pras costas". Hoje, tão avô quanto o meu velho DOCA ao seu tempo, não lhe concordo em tudo, mas vejo o quanto ele tinha razão. Exemplos disso têm me saltado aos olhos por aí e outros que assaltam os sentimentos deste que tornou-se testemunha ocular de tantos fatos.
Outra lição do meu avô que me deixava com um pé atrás do outro era quando ele enfatizava que "Filho que não apanha de pai, apanha da polícia". Aquele ditério me açoitava numa montanha de interrogações - era como se dissesse que "o filho tinha que apanhar dos pais para não apanhar da polícia". Era um tempo em que a polícia açoitava os ladrões e outros malfeitores à sua frente nas ruas, com cassetete de borracha. E isso eu vi! Hoje eu vejo que aqueles jovens do meu tempo, nas encravas daquele meu LARANJAL, ninguém furtou, ninguém roubou, ninguém estuprou, ninguém usou droga, ninguém se desviou. Incrível! E todos sempre respeitaram e respeitam o alheio. Foi e ainda é assim. Tudo vindo de um velho tempo. Do tempo de DOCA BARROS!
Velho Doca, culteranista de seus ditérios que para si e para os seus era um mote de vida e lição a ser seguida, também costumava dizer que "quem não olha na minha cara, não conversa comigo". Foi aí que o circo pegou e ainda pega fogo! Eu era criança quando ouvia essa ditério, mas só fui absorver e praticar a partir dos vinte e poucos anos. Hoje, aos 68, fico "doente" e não consigo conversar com uma pessoa que não olha na minha direção. Não aceito, não permito, não tolero. E cobro do interlocutor. Fazer o quê? Foi lição do meu avô!!! Não é agora que vou mudar...
Certa feita, quando eu trabalhava no meu primeiro emprego, no serviço público, assisti ao vivo à reprise em cores dessa lição. Um sujeito chegou ao meu chefe um mestre das letras, da educação e do direito e tratou algo com ele sem olhar à sua frente, rosto baixo, olhar desviado. Apoiou-se sobre a carteira e quebrou o vidro. O chefe, que era um homem discreto, um protótipo da educação e dos melhores princípios, virou um bicho depois que o homem saiu! E critou duramente o seu olhar esgueirado, desviado, comprometedores do seu caráter. Duvidoso e indefinido em seus valores. Foi quando vi aquele meu chefe em brasa viva falando sobre o caráter, refletido no desvio do olhar daquele homem. Aí eu falei com os meus botoes - tal qual ainda falo até hoje. Oh! Lição do meu avô! E revejo e pratico essa lição quase todos os dias, nos lugares por onde vou...
* Viegas questiona o social - Email: viegas.adv@ig.com.br
Edição Nº 14840
Comentários