Lugarzinho pequeno, fim do mundo, lá onde o vento faz a curva. Um povoado aqui outro acolá, casas distantes, num tempo de lamparina e pé no chão. De tempos em tempos uma festança fosse em boi de matraca; fosse em arrasta-pé desses que “atravessa noite inteira, até de manhã”, com Zé do Bule na rabeca e João Furtado na Bateria e João de Libanha no pandeiro. Pinga rolando, conhaque de alcatrão, uma “meladinha” (conhaque com mel) e por vezes cerveja quente ou um guaraná que era para “se amostrar”.
O dono dessa festança, tinha porém um encargo de lei, uma obrigação inevitável - um mês, dois meses antes da festa: TIRAR LICENÇA, na vila (na cidade), perante o Delegado de Polícia. Aquela LICENÇA era uma espécie de SALVO-CONDUTO; um atestado de gente boa; indicativo de que “tirada a licença”, o dono da festa podia tocar a pândega, sem medo de ser feliz. E, se na festa tivesse qualquer encrenca, confusão, briga ou alguém matasse alguém, o dono do fuá estava resguardado para o resto da vida, porque havia TIRADO LICENÇA – na vila, no Delegado de Polícia.
E “seu-delega”, que não era besta nem nada, matava uns trocados. E o caboclo, naquele dia, voltava para casa com a LICENÇA no bolso, passando a mão de vez em quando, como quem sonha acordado, rindo com as paredes, feliz da vida, cheio da razão, como se quisesse gritar ao mundo que havia TIRADO LICENÇA para a sua festa. Um documento enfim que lhe resguardaria de toda e qualquer responsabilidade se naquela festa acontecesse um estrago - um briga, um assassinato; um sinistro qualquer.
Hoje é dia da festa! Vem gente a pé, outros montados a cavalo em quilômetros e léguas de distância. Homens, mulheres, meninos até. Pomada brilhantina nos cabelos, “desadorante” debaixo do braço, sapato ressecado e apertado no pé e... aquele perfume vendido em retalho pelo negociante da bodega. E tudo isso faz(ia) parte do texto e do contexto. Era um tempo do “sebo de holanda” nos cabelos. Tem notícia disso aí?!
Pessoal vem de longe, chega lá pelas sete, sete e pouco, da noite. E vai tomar banho na cacimba. Aquele banho coletivo! “Mudar de roupa”, guardar a outra, calçar o sapato e... aproximar-se do terreiro da festa. Se é baile de dança não tem boia, mas se é festa-de-tambor, ou festa do Divino ou festa-de-promessa ou Bumba boi, aí tem prato feito e boia livre pra todo o mundo. Porque ali todo o mundo sabe que “festa boa é festa que todo o mundo come”. Gaba-se o dono da festa, gaba o povo que comeu até encher o bucho.
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Um espinho na garganta de qualquer dono de festa era a indisfarçável preocupação com uma briga durante a festa. Ali já se sabe, é todo o mundo armado de revólver, faca e facão. Era assim. Então, muitos festeiros em atos de boa fé e honraria, logo na chegada, rendiam-se e entregavam suas armas para o dono da festa que as repassava para “o homem do butiquim”, ele mesmo encarregado da venda de bebidas alcoólicas - este que agasalhava as armas carregadas dento de um mesmo saco. Um arsenal! E que os devolvia geralmente ao amanhecer. Muitos, porém, não entregavam suas armas e ostentavam-nas na cintura sobre a camisa, a noite inteira, durante a festa. Demonstração de “riqueza” machismo. Mas, ainda assim, armas a cinta era de puro enfeite, só para exibição.
Tinha lá meus 13, 14 anos e, de férias, fui a uma festa no lugar Conserva, na casa de Generosa, uma “fazendeira de boi”. Lá muito se falava em BUBUTE. Um sujeito “espírito mau”, brigador, cachaceiro. Já cheguei apavorado com esse tal de BUBUTE. Sem conhecer e perguntando aos moleques como eu. Vivia a procurá-lo no meio do povo. Até que de repente alguém me toca: “olha o Bubute!” Fiquei de orelha em pé! Não perdia o Bubute de vista no meio da multidão. E ele aí quieto... como qualquer um. Estranhei!
No meio do terreiro havia uma estaca enfiada ao chão, pontiaguda lá em cima. Inusitadamente alguém entregou a Bubute um tamborim. Bubute foi lá na estaca e enfiou e resfolegou o tamborim. Depois, pisou-o chão e destruiu-o em instantes. E eu ali, imóvel qual uma estátua de sal, mas “filmando” a cena! Em seguida Bubute, no meio do salão, puxa por entre as calças um luzidio, pontiagudo e amolado facão rabo de galo e com o ferro fazia diabruras no céu, na terra e no ar. “Te arreda, se não eu te pico”; “te arreda, se não eu te pico” vociferava BUBUTE endiabrado. E o povo em alvoroço “deixo disso...”. “deixo disso...”. E eu na noite, longe de casa, morrendo de medo e doido pra ir embora. Até que o dia amanhece e eu me prometi que nunca mais queria voltar àquele lugar. Até hoje, quando passo no São João, naquele vértice triangular que sai para a Conserva, eu me lembro das diabruras de Bubute; ele que destruiu a dente os lábios de Pupuca.
Parada braba mesmo foi numa farra-de-caixa (um bate-coxa), festança de terceira, na casa de Joana de Tiófi, lá pras bandas do Cipó de Mundoca. É que um rapagão chamado Melo e dois filhos de João Pedro moradores ali da beira, “estavam com o diabo no couro”. Foram lá e cortaram a embira que amarra o botequim. Ah pra quê!? Isso é desfeita para o resto da vida! Nisso intervém PEDRO GRANDE, padrasto de Melo. Os dois filhos de João Pedro tomaram o partido do companheiro e começa a carnificina. Deixaram PEDRO GRANDE em frangalhos. Levaram-no para a vila, na rede, mas Pedro Grande morreu a caminho. Foi a primeira vez, dias depois, que ouvi falar uma palavra: “corpo-de-litro” – que é uma prova material do crime e que aqui no asfalto chama-se “corpo de delito”.
Recentemente fui a uma festa na casa do meu amigo e contemporâneo de infância ANTÔNIO DE LIONÇO. Uma boiada (bumba-boi), misturada a “reggae”. Um novo costume daquele meu lugar, agora com luz elétrica e motocicleta “pescoço quebrado”. Antônio de Lionço pegou o microfone e lascou: Olha, quem tiver mal-intencionado e quiser brigar, caminho do feito por onde veio. A lua tá bonita, o caminho tá limpo; caminho do feio por onde veio. Aqui é casa de família, de respeito, não quero confusão. Aqui é tudo gente boa. E até o meu amigo Cleviegas veio da Imperatriz para a nossa festa. Então quem tiver mal intencionado e quiser brigar, caminho do feio, por onde veio... E eu lá, no anonimato, na distância, num momento em que me lembrava da LICENÇA, de Melo, de Pedro Grande, dos filhos de João Pedro e de BUBUTE. E foram esses os CAMINHOS POR ONDE ANDEI.
* Viegas é advogado e questiona o social.
E-mail: viegas.adv@ig.com.br
Edição Nº 14736
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