(texto anteriormente publicado, revisto e editado)

Naquele sertão em terras de roças de sobrevivência, de um analfabetismo devastador, de mãos tocadas a machado, foice e facão e matas de capoeirão, casas distantes umas das outras; por vezes uma "corrutela" aqui e outra lá no fim do mundo, sem uma única escola pública, sem estradas, num tempo em que ninguém ali conhecia TV e que o rádio era privilégio de uns poucos donos de casa em telha - o povo vivia de cabelo em pé,  com as perversidades de "CURRUPIRO", cujo espírito-do-mau é conhecido noutras paragens como SACIPERERÊ, CURUPIRA ou CAIPORA.
Para o povo, naquelas bandas - de mamando a caducando -  "CURRUPIRO" não era uma lenda, muito menos uma fantasia,  mas uma criatura do mato, um negrinho de pelo espinhado que se deslocava pulando sobre uma perna só e com o pé para trás. Perverso! Fumava cachimbo, tinha uma cobertura em vermelho na cabeça e assumia o ideário de uma entidade espiritual; de um personagem inexplicado; de um ente a serviço do mal, que assombrava transeuntes nos caminhos e fazia o roceiro perder-se pelo mato.
As pessoas viviam de "couro arrupiado", quando o assunto era CURRUPIRO, principalmente se sozinhos nos capoeirões ou nos caminhos ermos, sem casa por perto. Diziam também que o bicho era dono de um forte assovio que deixava uma enlouquecedora dor de cabeça em suas vítimas. Falava-se também que aquele ente das matas jogava sua vítima na copa do espinheiro e que só a madrinha poderia resgatá-la com a toalha de batismo. Cruz-credo! Credo em Cruz! Esconjuravam apavorados. E as crianças, ouvindo aquilo, cresciam aterrorizados e o medo de "CURRUPIRO" transmitia-se de geração pós-geração.
Nas capoeiras distantes, no matagal sombrio sem "picadas" (trilhas) de saída, as pessoas se sentiam à mercê de CURRUPIRO. Daí que qualquer sibilo no matagal era "couro arrupiado" e o pavor de CURRUPIRO por perto. E, naquele fim do mundo, muitos atestavam a perversidade do bicho; uns que o tinham visto, outros que já foram perseguidos, outros que juravam de pés juntos conhecer fatos e pessoas que sofreram as agruras daquela "entidade do mau".
Verdade corrente "de boca em boca", era também que CURRUPIRO afugentava as caças perseguidas por cães e caçadores. Também, em algumas ocasiões, torturava cachorros solitários ou em grupo; aterrorizava-os; fazia-os desistir da caçada; impunha-os a pancadarias; dor de cabeça aos caçadores e fazia-os perderem-se nas matas, ainda que à beira do caminho. As versões eram tantas, os testemunhos eram tais, que o povo sem lápis, sem cartilha e pés não tinha como não acreditar. E CURRUPIRO, solitário e perverso, andarolando  sobre uma perna só, reproduzia-se devastador na cabeça daquela gente.
O meu velho avô Doca Barros, caçador nato, era um homem cético, retrancado, não acreditava nessas coisas. E enfrentava suas jornadas solitárias em matagal fechado, caminhos ermos  noite e dia sem nunca acreditar e sem nada temer. Um dia... porém... sentiu na pele os rigores de uma "coisa estranha" quando seus cachorros de caça, em pleno combate, foram vergastados espancados e recolheram-se trêmulos e apavorados como  se quisessem esconder-se às pernas do velho caçador.
Mas esse bicho tinha um outro lado: deixava-se corromper, aceitava fumo de quem tinha "pacto" e facilitava caças aos seus aliados. É verdade! Naquelas bandas havia um homem - GREGÓRIO DE BASTIÃO - que vivia mato a dentro, noite e dia, a serviço da caça. Suas roças eram do tamanho de um fundo de quintal que não se completavam e eram abandonadas. "Perdidas", como se dizia. Por aquelas bandas as caças-do-mato estavam em extinção, mas não havia tempo ruim para aquele sujeito que, por vezes, entre uma pinga e outra, enrustido,  entregava a parceria e dedurava CURRUPIRO. Sobre essa maldita parceria havia uma desconfiança generalizada.
Eu, de férias, morria de medo de "CURRUPIRO". No mato tinha sempre um facão às mãos; convocava sempre a companhia e presença de uma fera sagaz e vira-lata chamada "CAÇADEIRA"; colocava um galho de murta atrás da orelha para afastar os maus presságios e um Pai-Nosso e uma Ave-maria e o sinal da cruz a qualquer emergência. Mas a coisa se complicava quando Caçadeira, por algum motivo, estava ausente. E quando a cachorra "latia acuada" a gente, no mato, tremia na base. Será?! As gente se interrogava. E assim Currupiro (ou Caipora), foi, entre nós, um personagem da vida real. Nunca uma lenda!
Hoje, meio século depois, diploma de datilografia e cursinho semanal de Windows, celular em tempo real e morando no asfalto e com as casas "umas do lado das outras", ainda me recinto das marcas das lembranças do terror e das minhas dúvidas sobre CURRUPIRO. E, se para a cultura e para a didática aquele "dono das matas" de uma perna só, pé para trás, entidade do mau, fumante em cachimbo, perverso, protetor das caças e de poucos amigos é uma lenda, um folclore, em meio a sertanejos descalços e analfabetos, par mim que vivi na pele e no imaginário, sem nunca tê-lo visto, tudo o que digo é o seguinte: não digo nada!
 
* Viegas é advogado e questiona o social.
E-mail: viegas.adv@ig.com.br