Por vezes eu fico cismando sobre esse dom da vida, essa faculdade que é a memória. A capacidade que temos de armazenamento de dados, informações, conhecimentos, fatos, cenas, imagens, nomes e tudo enfim. É incrível essa criação do CRIADOR DE TODAS AS COISAS. E nosoutros, alheios e indiferentes a tudo isso, geralmente nem nos damos conta de tantas riquezas e benesses que nos cercam a vida inteira. Abrindo passagem com o AGRADECIMENTO ao CRIADOR pela faculdade da memória é que lembro agora de FLORÊNCIO DE MUNDICO, com quem pelas via da escola, convivi na minha primeira idade - aos cinco, seis, sete anos.
Florêncio de Mundico é(ra) FULÔ para todos ali. Dono de uma voz tipo locutor-padrão; filho de Mundico do Sertão, tio Mundico, como o chamava - este o meu mestre das primeiras letras em sua ESCOLA SERTÃOZINHO, à sala de sua casa em paredes de palha e chão batido. Foi ali onde ainda no bê-a-bá conheci o ninho da coruja, vindo da palmatória "Santa Luzia", feita em madeira-paparaúba, destinada a quem mijasse fora do caco e... a quem não desse conta da lição. Velhos tempos, aquele meu tempo.
Florêncio de Mundico, o primeiro dos varões, também era mestre, seguindo a cartilha firme do pai. Tim-tim por tim-tim, na escola e nas pegadas do pai. A lei do mestre era uma só: "escreveu não leu o pau comeu". E Florêncio era bom nisso. E ai de Florêncio se não seguisse a regra! Dava bolos de "sair faísca". E apenas pouco mais idoso que os demais, unia-se mas não se misturava a com a galera. Aí os bolos dados ficavam para trás e, no exercício seguinte, tudo continuava com a mesma mão pesada, a singularidade das pancadas e os olhos marejados da moçada e da rapaziada. Florêncio adquiriu o vício do cigarro desde cedo, ferindo a cartilha do pai e, quiçá por isso, adquiriu uma voz comprometida.
Afora as lides escolares da ESCOLA SERTÃOZINHO, que exerciam de puro altruísmo, sem absolutamente um centavo de troca, tanto o decano e mestre Mundico quanto o seu filho Florêncio e todos os demais, tinham os encargos normais e obrigatórios na roça do pai. Florêncio, na contramão de tudo e de todos, começou a fumar ainda cedo. Seu vício ao fumo era uma guerra surda em família. Florêncio, por vezes, apagava o cigarro nas mãos, queimava-se quando na emergência tinha que esconder-se do pai.
Florêncio, ainda que naqueles rincões perdidos no meio do mato, entre bolos de palmatória a que impunha, tarefas de capina e cigarros escondidos, demonstrava, ao que hoje entendo como uma inteligência acima da média, em meio a tantos roceiros ali e, como sempre, debaixo dos caracóis dos cabelos do seu pai e senhor, o velho MUNDICO DO SERTÃO, homem duro, sério, seguro, intransigente - forjado a ferro e fogo aos costumes do seu tempo. Ainda cedo, aos oito anos, FULÔ fazia contas, tirava a prova dos nove; vendia "cargas" do seu pai e negociante sabido não o enganava.
Hoje revendo no tempo, imagino que Florêncio, ali naquele meio de mato, já maduro, sentiu-se ilhado, limitado e queria dar vazão aos horizontes e perspectivas de sua vida. Foi assim que pediu licença ao paternalismo fechado e "destabocou" estrada a fora, atravessou o mar e foi dar com os costados na capital São Luís, um chão que outrora jamais sequer houvera pisado. Tornou-se, então, balconista de pequena mercearia e "camelô ambulante", um trabalho que exercia no coração da cidade, num corredor entre a Praça João Lisboa e a Rua Osvaldo Cruz, com uma pequena tabuleta, pendurada ao pescoço. Pequenos novelos e tubos de linha, agulha, envelope, botões, fitas em cores, pequenos espelhos, elástico, cadarço de sapato. Sua tabuleta completa, em moeda de hoje, algo como trinta reais. Imagine o ganho. Esse veio a ser o ofício, na cidade, de Florêncio de Mundico, o mestre do sertão.
E ele lá, na sua cantilena de camelô, com o seu vozeirão. Ele mesmo que um dia me disse que "Camelô na conversa ele vende algodão por veludo / não tem bronca porque neste mundo tem bobo pra tudo", parafraseando, aliás, velha música do cancioneiro popular na voz do decano Alcides Gerardi. Mais tarde, porém, o vi como balconista "caixeiro", numa outra e pequena mercearia de um bairro distante. Conversávamos pouco e raramente eu encontrava o FULÔ, meu contramestre e autor daqueles pesados e impiedosos bolos de palmatória, num cumprimento da regra do seu velho MUNDICO, ambos donos daquela voz de locutor-padrão.
E nessa vidinha de pouca coisa, sem futuro, Florêncio novamente sentiu-se ilhado, encalhado. Precisava dar asas aos seus horizontes. Foi assim que naquela entressafra pós-carnaval, o ex-professor do sertão quiçá sem dar notícia aos seus, como aliás isolado há muito já vinha sendo, pegou um navio-a-vapor e foi dar com os costados no Rio de Janeiro! Foi pela influência de um amigo de ocasião. Um chão do qual não conhecia uma viva alma. Nem sabia para onde ia, senão apenas de onde vinha. E aventurou-se por aquele mundo. Florêncio, no Rio de Janeiro, enfrentando as borrascas de um aventureiro, tornou-se ENFERMEIRO, com diploma, empregos, família, estabilidade e tudo o mais. E só um ou outro dia voltou por lá. E nunca mais voltou ao seu chão de origem. Nunca mais.
Certa feita enfrentei uma maratona para localizá-lo, por telefone, no Rio de Janeiro. Queria que ele conhecesse um texto que escrevi sobre A ESCOLA DO TIO MUNDICO e um ensaio intitulado "TERRA DA MINHA TERRA". E ainda consegui falar por umas duas vezes. Mas aí Florêncio já não era mais aquele cara que um dia me dizia que "Camelô na conversa ele vende algodão por veludo / não tem bronca por que neste mundo tem bobo pra tudo". E o silêncio... novamente... tomou conta da gente. E eu, filho da gratidão, ainda assim posso ver que esse mesmo FULÔ foi um rio que passou em minha vida.
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Viegas é advogado, escreve o quotidiano do seu chão de origem e questiona o social. Email: viegas.adv@ig.
Edição Nº 14541
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