Toda e qualquer cidade que se preze tem lá sua "figuras" que compõem a vida no dia a dia e a sociedade marginal. São ébrios, esmoléus, deficientes físicos ou mentais; outros que carregam apelidos que o infernizam. Enfim, são os excluídos. Na minha terra natal, por exemplo, são incontáveis as figuras que fizeram e fazem o brasão dos rejeitos do social. Chico-cu-de-sapo, que nem mais se incomodava com a alcunha, deixou o apelido para os seus descendentes - filhos, netos, bisnetos. Vizinhos, até. Esperança-doida era provocada, abusada e humilhada pela molecada, por onde ia. Manoel João Fateiro, precursor do homossexualismo  local, sempre armado, virava uma fera e revirava os olhos se lhe chamassem pelo apelido, disposto a estragos. Zé Bicudo, com fama de virar "labisonho" nas encruzilhadas, desbarrancava-se a si e a qualquer um quando chamado pelo apelido.
E eu, vocacionado questionador do social, que há muito observo - converso, interpreto e respeito AS FIGURAS DA CIDADE.
Elias do Boi - Elias do Boi foi uma figura recorrente em meus textos. A cada tema uma nova abordagem. Fiz-lhe uma primeira ainda nos meus tempos de "Rádio Livre", na Rádio Imperatriz; outras vieram depois. Elias é essa figura que todos conhecemos. Tem uma fala atrapalhada e a gente não entende nada com nada. Elias, quando chegava o período junino, saía cantando com o seu boizinho, tocando um pandeiro com laços de fita e cantando suas toadas que ninguém entendia. Eu, porém, entendia ao Elias, no seu sangue afro, na sua veia nordestina, no imaginário sotaque do bumba-boi. Hoje Elias está recanteado, quase calado. E não sai mais por aí nem balançando o seu boizinho, nem tocando o seu pandeiro, nem cantando as suas toadas. Mas ainda está... por aí...

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Em meio a tantas figuras, tem uma com cara de novata, na cidade. É um tipo "rodada". É uma morena forte, de cabelos desgrenhados. Ela anda com uns "teréns" nas mãos. Parece que está sempre brigando com tudo e com nada. Dia desses ela estava agressiva, valente toda. Brigava aos berros com ninguém, olhando para o vazio. Queixava-se de estar sendo perseguida, provocada. Dizia que jogavam-lhe cabelo de cachorros e outras coisas. Pode uma coisa dessa? Ela se perguntava. Estava valente, pronta para o que desse e viesse. Instantes depois, silêncio total. Dez metros mais adiante e parece até que já nem era a mesma pessoa.
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O cara do som. A cidade conhece e convive com uma figura antiga. Desde jovem que já é "desmiolado". Havia um tempo queria investir-se de guarda-de-trânsito. E ficava nas esquinas ou trechos movimentados. Com um apito e sinais e movimentos manuais dava ordens ao trânsito. Mandava parar, mandava seguir. Interrompia, abria para o outro lado. Deixava passar. Posteriormente, era visto à margem dos festejos católicos, sempre "comandando o trânsito". Largou o ofício e agora numa bicicleta toca um serviço de som com um microfone impostado. Nadinha! Simula que faz "propaganda volante". Diariamente é visto pela cidade com o seu microfone impostado e com a caixa de som à garupa de sua "bike". Bem que a gente vê que ali tem dinheiro de aposentado. E um cara encasquetado. Ora se tem!

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E aquela morena? Baixinha. De trajes seminus? Mais nua do que vestida. Quase não fala palavra nos lugares por onde moureja. É outra recorrente de meus temas. Já dediquei-lhe esta página mais espaço no rádio, abordando sobre sua dura sina, os rastros que deixa. Ela mora e tem familiares pras bandas do alagadiço da beira rio. Nos fins de tarde, como quem acabara de banhar-se, era vista subindo a ladeira rumo à cidade. Vivia acasalada pelas ruas com um sujeito, outro excluído, cara de hanseniano que se lhe explorava a debilidade mental e os desvarios da carne - com quem acasalava-se nas noites, a céu aberto, nos lugares ermos por aí. O hanseniano morreu e logo outro - como bem assim acontece na alta sociedade e nas "boas famílias" - assumiu o seu lugar. Essa moça, faz dias, não fora mais vista no trecho por onde vivia.

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E os do Mercadinho? Pobre Mercadinho, quer dizer: rico Mercadinho! O Mercadinho, como sabemos, é um antro infestado de tudo a tudo: rato, barata, mosca e outras ilicitudes. O Mercadinho é um eterno caso de polícia e de vigilância sanitária. Uma carcomida e insolucionável questão de saúde pública. Ali muita gente se cria, assim... no ôba-ôba, pedindo pra uns, ganhando de outros, recolhendo as sobras, levando na barriga e no bico. O Mercadinho é um terreno de figuras da cidade. Velho João é um deles, tem mais de dez anos de chão e pinga e rua de Mercadinho. Faz pouco tempo, numa derrapada da vida, mandou um parceiro para os quintos... Agora velho João, sem um centavo,  como sempre, chega na panelada e, no bico, pede um prato. Quando o prato demora, velho João solta um refrão: "já mandei um para os quintos, pra mandar outro, não demora". E nessa lambança vai comendo, vai bebendo e vai tocando... até um dia. Talvez.
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Na Bernardo Sayão, à beira de um posto de combustível, frequenta um negão. Tem familiares pelo Santa Rita, mas não deixa o local. Acho que já morou por ali. Encrenca com um e com outro, volta e meia é escorraçado por um e por outro, mas não deixa o local. Numa tarde, depois de um bate-boca com um dali, ânimos exaltados, ele fez uma média comigo: "Doutor Viegas, você é meu". Logo imaginei: estou protegido.

" Viegas é um questionador do social.