E então a galera morava na Casa do Estudante. A Casa do Estudante era um “zoológico” perfeito. Uma velha dádiva do Governo do Estado ao estudante pobre, do interior. Tinha gente de todos os quadrantes. Maranhenses, piauienses, cearenses e outros estrangeiros. Os maranhenses do interior predominavam. A Casa do Estudante era de uma democracia nata, invejável, única. Cada um sabia e cuidava de si. Ninguém vivia regrando ninguém. Não havia culpado/s nem punição. Volta e meia, como em ambientes coletivos, sempre uma brincadeira mais ácida. Nada, porém, que beirasse o intolerável. Também, não havia brigas nem disputas nem desates pessoais. E nessa tribo uns sessenta, divididos em quartos lá em cima e outros na “geral”, lá embaixo.
Pode-se dizer que a Casa do Estudante dividia-se em dois grupos: os que trabalhavam e os que não trabalhavam – empregados e desempregados. Nesse contexto subdividia-se em três subgrupos: os “mais ou menos”, os que “seguravam-se em pé” e... “os que não tinham onde cair morto”. Eis a pirâmide social, estabelecendo as classes A, B e C. No grande conjunto, entretanto, todos estavam ao mesmo barco, nesse ocenano de lutas frequentando e trabalhando a escolaridade e empenhados com o futuro. Nessa ótica, tudo farinha do mesmo saco.
O ambiente da casa, apesar do grande coletivo, era tranquilo e manso. Não havia notícia de droga nem desaparecimento ou desfalque em coisa alheia; nem desatinos ou desvio de conduta. Não havia rastros de uso de cigarro e só raros registros de bebida alcoólica em eventuais finais de semana em meios aos moradores do “POTE”, que era um apartamento de decanos, adultos e donos do seu nariz; eles que formavam uma espécie de “estado maior” daquela corporação. E, no meio dessa galera, entre outros, morava o ESCRAVINHO.
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ESCRAVINHO era ALMIR, na pia batismal. Natural de Chapadinha, era um jovem de vinte e poucos anos, colegial como os demais, estatura mediana, “sarado”, empregado de balcão de farmácia. Tinha o hábito de chamar os demais de “ESCRAVO”. Escravinho tinha a fama de bem-dotado, uma fama que ele mesmo dava vida e asas a cada novo dia. ESCRAVINHO contava histórias de suas passagens em amores de ocasião. E, nos raros momentos em que dispunha-se a falar de si e da sua gandaia, havia sempre um grupo à sua volta, saboreando as estórias acridoce a que narrava. Contava ESCRAVINHO que numa certa feita, altas horas, em final de semana, encontrava-se “na boa” com a sua namorada de ocasião. Era na calada da noite e ao silêncio da vida urbana.
ESCRAVINHO agasalhava-se com sua namorada ao soturno de uma cobertura em meia-água, em busca de sexo. E a cena estava a um passo da realidade. Tudo no vapor! Arruma daqui, ajeita dali; olha pra cá; olha pra lá; daqui não vem ninguém, dali também não vem. Coração saindo pela boca, ansiedade a mil megatons; neguinho em “ponto de bala” e bem dotado ali, valente, pronto para o combate, com energia erótica tudo no ponto. Quando de repente... o guarda!!! O guarda já chegou envenenado! E o escravinho com as calças nas mãos. Olha a situação! Muito bem, vocês aí, heim??? Bufou o guarda. Não seu guarda... o senhor sabe... né...? O quêêêêêê? Vamos pra delegacia agora!!! Não seu guarda, colabore, o senhor sabe, né??? O quêêêêê??? Tais querendo me conversar? Vambora todos pra Delegacia. Agora! E empunhava um cassetete de borracha disposto à pancada!
E lá se vão no soturno da noite, na frente o Escravinho, seguido pela namorada e mais atrás o guarda com o cassetete nas mãos; maus bofes todo, soltando fogo pelas narinas e disposto ao fuxico. E escravinho, ali, humilhado, caminhando na frente, segurando as calças. E vendo que quanto mais caminhava mais aproximava-se do patíbulo e da desgraça e foi aí que, no desespero, ESCRAVINHO só teve tempo de tirar os sapatos e vazou no mundo e na velocidade, deixando para trás a namorada à própria sorte e os arroubos do guarda. E “o rabo era um relho”! E voou na escuridão do silêncio da noite. E tudo o que ouvia era o apito do guarda que o perseguia e a resposta de outros apitos de outros guardas do setor. ESCRAVINHO narrava o seu drama da vida real e a turma em volta no suspense... imaginando a si próprio...
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Na casa do estudante não sei por que sim, não sei por que não, jazia na sala que dava acesso aos fundos e neste uma imensa cisterna, em que a turma tomava banho e lavava roupas. Apareceu ali uma placa de ferro, algo como 2,50 X 1,20 metro, recostada à parede. Escravinho, assim como tantos outros, levantava-se ainda no lusco-fusco das manhãs, para tomar banho, fazer a higiene pessoal, tomar ônibus e chegar às sete e meia da manhã ao trabalho, como era o costume da época.
ESCRAVINHO, então, valendo-se da fama e da condição de “bem dotado”, recostava-se àquela malsinada placa de ferro, utilizava-se em manuseio daquele membro com que pretendia amar a namorada na noite quando foi flagrado pelo guarda e tum... tum... tum... sobre placa de ferro. O som que espargia das pancadas sobre a placa ecoava pelo universo da casa. Escravinho então bradava: “acorda, escravo”, “acorda escravo” e tum... tum... tum... sobre a placa. E a turma já sabia. Era a alvorada com que o Escravinho costumava “brindar” os moradores daquela CASA DE ESTUDANTES.
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Em meio ao zoológico que era aquela casa, morava o JUAREZ, vindo das bandas do Coroatá e que costumava queixar-se de “chato” na virilha; “esquentamento” e outras venéreas e que mais tarde o encontrei advogado, numa audiência na cidade de Rosário. Juarez era um cara “desbundado” que, sempre aperreado, vendia sapato, vendia camisa, vendia chinelo, vendia o cinto, vendia o que tinha pela frente. Um dia, quando não tinha o que vender, oferecia o cadarço dos sapatos.
Foi numa dessas manhãs quando o ESCRAVINHO tocava a alvorada sobre a placa de ferro: tum... tum... tum... para provocar a galera, quando o Juarez, não sei por que sim, não sei por que não, ao passar do banho e concluir os degraus de acesso, tropeçou e foi cair com as mãos sobre aquele colérico e bem-dotado membro com que Escravinho pretendia amar sua namorada e foi escorraçado pelo guarda. E ESCRAVINHO contava mais uma da sua coleção de aventuras. E Juarez... pagava o mico...
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* Viegas é o olhar do pássaro sobre o galho e questiona o social. Email: viegas.adv@ig.com.br
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