*Viegas

Longe se vão os anos cinquenta e a "Escola Sertãozinho", era uma página de ensino ao som da palmatória - herança do antigo e rude sistema de aprendizagem colonial. Ali sim: "escreveu não leu, pau comeu". Tudo simples - aprendia-se a ler, a escrever e "fazer contas". O estudo começava às sete e meia da manhã e estendia-se até ao meio dia, um horário sem relógio, avaliado pelo sol. E era - vênia em memória - como um coaxar de sapos na lagoa. Quem passava a pouco mais de cem metros podia ouvir a turma "estudando". Os mais diversos níveis colegiais, gente de variadas idades, estudávamos todos na mesma e única grande sala da casa do mestre, sentados em bancos de tábua (tipo prancha), recostados em paredes de palha. Ao centro da sala de chão batido, uma grande "banca". E sobre a mesa, a temível palmatória "SANTA LUZIA". Macerada de tantas mãos, calafrio, dor e lágrimas.
Éramos, mais ou menos, uns vinte e poucos colegiais do primeiro ao quarto livro e todos estudávamos ao mesmo tempo, em voz alta, cada qual a sua lição, num multiplicado de vozes e assuntos, num estilo quase de cantoria à míngua de interpretação. - Cinco vez um cinco, cinco; cinco vez dois dez...- quatro e quatro - oito; quatro e cinco - nove; quatro e seis - dez; t ê-a-ta-bê-a-ba - taba, é-rri-cê-o-co - rico; vê-a-va-ess-o-só - vaso. - Dois e um - três - dois e dois - quatro; dois e três - cinco; - certo dia um rei convidou os seus súditos...- Abraão Jacó e Jeremias... E lá se vão as lições...
Das onze em diante, Tio Mundico, em carne e osso, de cenho fechado e olhar incisivo, punha-se a "tomar as lições", todas, de um por um e quem não desse conta ficava de castigo, estudando a lição, até meio dia ou mais tarde, quando desse na "veneta" de mandar embora. Aos sábados, todos nós, das mais diferentes idades, tamanho e nível escolar, em pé, a um canto da sala, num formato de meio lua, circundávamos o mestre. Impoluto, decidido, circunspecto - dono de uma voz metálico-tenor em que cada palavra era uma lei; um decreto que ninguém jamais teria coragem de transgredir. Por isso a disciplina e obediência ali era tudo - em primeiro e último lugar.
- Meu Deus do Céu, hoje é sábado! Era o dia do temível e terrível ARGUMENTO, uma espécie de prova oral em tabuada, contas de somar, diminuir, multiplicar e dividir. - Ai de quem não souber o ARGUMENTO! Ai de quem! O bolo da palmatória corria livre. Por cada pergunta em sabatina, quem acertava batia nos que erravam. E haja perguntas: Trinta dividido por cinco? Setenta e dois dividido por nove? Oito vezes sete?...
O nosso argumento era um suplício geral. E o bolo tinha que ser "bem dado", do contrário viravam-se os papéis e quem dava-o mal, ou leve, então apanhava dos demais como uma forma rigorosa e "pedagógica", de cumprir e executar as ordens do mestre. E apanhava bonito! Certo dia Sipriano, filho de Lourenço Estrela, de uma "lapada", "emendou" seis, respondendo a uma pergunta. O "Supico" (como era chamado) foi complacente nos bolos - deu de leve - apanhou um de cada. Seus olhos ficaram vermelhos e um solitário fio de lágrima desceu-lhe ao rosto. Mas era a lei...
E assim a "Escola Sertãozinho" vivia o seu magistério entre bolos e castigos, a serviço do cidadão, da família e da pátria. Certo dia Eulálio, cuja nossa língua só dava conta de chamar OLAIO, chegou à Escola, sentou-se em seu lugar, cuidou de sua lição mas não tomou a bênção ao mestre que também era o seu padrinho. - Vem cá Eulálio, nós dormimos juntos, ontem à noite??? Pergunta o mestre, dominante e esticando na interrogação. - Não "sinhô", responde OLAIO, mal dando conta de "despedir a palavra". Olaio apanhou meia dúzia de bolos, três em cada mão, que urinou em plena sala, aos olhos de todos, mas ninguém deu um piu. Bastou um olhar rígido e panorâmico de Tio Mundico por sobre os óculos e parece que nada aconteceu. Eu estava lá!
Na "Escola Sertãozinho", haviam duas personagens-materiais imperdoáveis para todos nós: a palmatória sarcasticamente intitulada "SANTA LUZIA", em constante desafio e ameaça, uma mais que prova-de-fogo! E a outra era uma PEDRA de aproximadamente 200 gramas que ficava sobre a grande banca. Era o seguinte: estando a pedra sobre a mesa, qualquer um podia pegá-la e ir "lá fora" (ao banheiro). E só quando novamente a pedra sobre a banca, o outro poderia tomar posse e "ir lá fora". Era a regra. Era a lei! E ao final da "lição" - até que enfim o momento de libertação - era todos nós, lá pelo meio dia, botar o lápis, a "pena" (espécie da caneta que se molhava ao tinteiro), a tabuada e o "livro de leitura", dentro do cofinho (artesanato de palha), empunhá-lo a tira-colo, tomar o caminho de casa e "mortos de fome" sair varejando murteiras e cajueiros e mangueiras à beira do caminho.
E assim os anos se passavam. A gente aprendia a "lê". Lia-se o Primeiro Livro, o Segundo Livro, a História Pátria e rudimentos da Bíblia Sagrada. Também aprendia-se a tabuada. E os mais adiantados "faziam contas" (as quatro operações) na ponta do lápis. E aprendia-se a "tirar a prova dos nove", uma fórmula antiga e primária de contraprova (confirmação) em operações aritméticas. Também, diariamente, "os mais adiantados" faziam um "traslado", o ano inteiro. Um texto-modelo em papel manuscrito que era reproduzido de janeiro a dezembro. "Não brilha o diamante sem lapidação / O mesmo acontece ao homem, sem educação"...".
Durante tantos anos, a Escola do Tio Mundico foi um raio de luz naquelas trevas, naquele meio de mato, onde sempre imperou o patacho, a foice, o machado e o facão. A dura luta dos roçados e mãos grosas e calejadas das mãos-de-pilão. Tio Mundico foi um herói anônimo a serviço da educação gratuita. Uma experiência que herdou dos seus ascendentes. E alfabetizou a toda aquela gente. E, na palmatória, lapidou-os em seus limites e ao seu tempo. Ocorreu, no entanto, que a totalidade dos pais entre alfabetizados e analfabetos também não vislumbravam outros caminhos para os seus filhos - eles e elas - senão a roça, a foice e o facão.
Um dia, porém, o Velho Mestre, autodidata e cultura geral por excelência, dono da lei e de um saber como ninguém por ali, fechou as portas de sua Escola. E tio Mundico partiu para sempre, deixando viva a lembrança que se perpetuará para sempre no coração daqueles que, como eu, aprendemos as primeiras letras na "ESCOLA SERTÃOZINHO".
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* Viegas é advogado e questiona o social. Email: viegas.adv@ig.com.br