Era mês de abril. Era um tempo em que morávamos naquelas terras, nas capembas do meio do mato, que ali já encontramos batizada com o nome de “CENTRINHO”, para onde mudamo-nos a tribo inteira – pai e mãe e uma “penca” de filhos, uns oito. Uma reles e apertada e esticada vereda ia acabar em nossa porta. E, numa outra alternativa, dava uma volta um pouco à frente e saía num pequeno povoado que ali chamava-se “Vila Pereira”, nesta onde moravam espremidos os filhos e netos e genros e noras de uma decana matriarca e viúva, Dona Raimundinha Pereira.
A casa era uma mais que sofrida choupana, coberta e cercada em palha - toda “estiorada”. A quase meio quilômetro, aos fundos, tinha uma cacimba de água que buscávamos diariamente em multiplicados vai e vem na cabeça e nos ombros. E tinha aos fundos um pequeno juçaral com dois gêmeos pés de buriti, estes que compunham também a cada safra a nossa fartura e fonte de sobrevivência. E enchíamos a pança, ora em “vinho de juçara”, ora em “vinho de buriti”. Éramos felizes e não nos dávamos conta disso.
A nossa morada ficava num “deserto”, dentro do mato, onde aparecia de tempo em tempo um cristão ora à procura de um cavalo fugido, ora algum roceiro em serviço de diária, ou alguém em tratos com o meu pai. De resto ali não ia mais ninguém. E deixava-se a casa à própria sorte o dia inteiro, aos “cuidados” de crianças e, por vezes, sozinha a semana inteira, quando os pais e a filharada estavam “de muda” em lavoura de roças que ficavam distantes e que o meu pai entendia que “não valia a pena” o ir e vir de todos os dias.
E todo o nosso mobiliário era composto de um pote, duas cabaças (vasilhas de água), uma banca de madeira; dois tamboretes – que ali chamava-se “mocho”; uma mala de roupa com uma pedra de desinfetante e a “joias” de minha mãe. A rede de dormir de cada um, ferramentas de serviço: machado, “patacho” (cutelo), foice e facão; três “casais” de prato de estanho, um caneco de alumínio, um fogão de trempe que ali chamava-se “tacuruba”, uma espingarda “por fora” ao canto do quarto; uma cangalha de cavalo e... uma pistola enferrujada tipo “mauser”, que era objeto de fetiche do meu pai, espécie de adorno e “poder” que ele usava quando ia para as festas ou quando viajava.
Pelo caminho à direita chegava-se à pequena “Vila Pereira”, em cinco casas de palha que ficavam a dois quilômetros da nossa. Pela esquerda, a pouco mais de meia légua, ficava a “barraca” de Dionísio de Torquata, já nas beiradas do Rio do Meio. E nesse estirão não havia um único casebre senão, só mais tarde, o de Gregório de Bastião, um símbolo do paupérrimo que com sua “quêra” de filhos depois chegou ali. E também só depois, Dona Cristovinha com o seu filho Cadete, que também chegaram perdidos naquele fim do mundo. Era nesse pântano de pauperismo analfabeto - de abandono e sofrimento que vivíamos todos ali. O meu pai então com sorriso em dente de ouro, e uma “mauser” na cintura e petromax para “alumiar”, tinha fama de “arremediado”. Foi lá onde cheguei aos 10 anos e outros tantos irmãos que ali nasceram no meio do mato, à luz de lamparina.

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Era mês de abril. Aquele nosso chão, àquela época, tínhamos inverno regular que chegava e findava-se na previsão. O inverno era o cruzeiro e o ar da esperança e o alento de todos nós. Tivéssemos um bom inverno, teríamos “roça suja”, capina redobrada, mas em contrapartida também tínhamos colheita: Arroz e mandioca e milho e feijão. Era um tempo em que vivia-se tão somente da lavoura e do suor dos nossos roçados. Meu pai, porém, de tempo em tempo, vendia redes em terras de viana, penalva e cajari, onde por vezes passava até 14 dias em viagem, em sofridas costelas de cavalo, sempre com um rifle papo amarelo atravessado sobre a “carga” para afugentar os “mal-fazejos”. Uma bravata e tanta!
Ao mesmo tempo em que o inverno era o nosso alento, o ar de um novo tempo, perspectiva de colheita e bucho cheio, era também um sacrifício a que enfrentávamos nós. Com o inverno enchiam-se os “rios” que eram pequenos ribeirões temporários, aos quais éramos submetidos. Era um sofrimento! No Rio Grande, havia uma “ponte”, uma “pinguela” formada pela haste de uma árvore fina e comprida, algo como seis metros que atravessávamos apoiados por um “corre-mão”.Tudo improvisado, amarrado com cipó. Por vezes nos benzíamos diante do voto: “seja lá o que Deus quiser”. E atravessávamos a pinguela, por vezes com a água dando no joelho, sobre a “ponte”. Um risco de vida!
Tantas vezes, atravessamos a “ponte” com o rio cheio, igapós cheios, cavalo em nado. E ainda carregávamos jacás de colheita ou sacos de farinha sobre os ombros, por vezes na escuridão e, como sempre, no risco de vida. Do outro lado do rio, tantas vezes no escuro da noite, tínhamos que repor a cangalha, selar o animal, repor a carga – uma tarefa que não raro era coisa de moleque, de criança – tal a “necessidade” a que éramos vergastados. Numa dessas o meu irmão José, um modelo de pessoa humana, quase perde a vida. E eu, testemunha da história, nesse mesmo Rio Grande, também tenho o que contar.
Era mês de abril. Mês de abril era a cruz e a espada da nossa travessia. Era o pique do inverno; o ponto alto das nossas chuvas. Os riachos e ribeirões transbordavam; os caminhos eram alagadiços; as lavouras também alagavam; outras que se perdiam. No mês de abril a gente “comia tampado” pelo vergaste das chuvas e pelo paupérrimo que grassava aquela gente da qual compúnhamos uma estatística de que não se tinha notícia. Nem no papel. Mas os gritos do analfabetismo e da miséria ecoam até hoje, ainda que ninguém ouça, nem disso tenha ouvido falar.
Era mês de abril. Minha mãe deixava acentuada a sua preocupação com o mês de abril. Ainda era fevereiro, era março e minha mãe já estava de olho no mês de abril. Ela sabia do pancadão das chuvas. Sabia que a barraca (a bodega) de Dionísio de Torquata ficava a meia légua e tinha quase nada. Sabia que Belas-Águas onde havia um pequeno comércio, ficava a uma légua de caminho. Era uma manhã para moleque ir e voltar. Sabia que Rio Grande passava sobre a “ponte”; sabia que o caminho pelo “Rio do Meio”, pior ainda. Então minha mãe cuidava da despensa: dois litros de querosene, um punhado de sal; uma quarta de café, um mercado de açúcar. Três caixas de fósforo. Era mês de abril. E quando dava fevereiro, março, minha mãe já se preocupava. “Oh! Vem aí o mês de abril!”
Àquele tempo eu era um neto – agora tenho netos. Mas ainda hoje quando chega o mês de abril, eu vejo e ouço no tempo a minha mãe preocupada com as chuvas que passavam sobre a “ponte”; que grassavam a nossa roça, os nossos rios, a nossa vida. O nosso caminho. E, nesta coluna em que me realizo, são esses os... CAMINHOS POR ONDE ANDEI.

* Viegas é olhar do pássaro sobre o galho.
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