“Boate”. Boate, entre nós, é coisa do tempo das Capitanias Hereditárias, quando o Rei de Portugal dividiu o Brasil para uns poucos amigos do peito. Boate antigamente era outra coisa, escrevia-se “boite”, do francês. Ainda me lembro daqueles dias, quando a palavra “boate” guardava um sentido pejorativo; era quase uma palavra proibida. Objeto do preconceito social. Em família, boate era um palavrão, esconjurado até, em meio às pudicas. Lugar carregado, mal-fadado e mal falado. Boate naquele tempo era lupanar, casa de “mulheres de vida livre”. Boate era a encarnação do CABARÉ. Ambiente de puro sexo, orgia e bebedeira que exalava o sego pago.
Madurões, bonachões, funcionários, intelectuais, poetas, soldadesca, marinheiros, embarcadiços, empregados públicos, estudantes – era esse o perfil-multiface de homens que procuravam BOATES para o sexo pago, muitos jovens nas primeiras experiências, com os amigos na torcida, do lado de fora. As mulheres, por sua vez, pontificavam nas boates durante a noite e dormiam durante o dia. Bebidas em cerveja, uísque e destilados e a noite rodava nas boates, geralmente de “luz negra” ou “luz azul” como era a novidade de um tempo.
A mulherada, muitas delas, tinha seus clientes cativos, fregueses contumazes, todo o mundo movido ao tilintar do vil metal. E o sexo se multiplicava na noite de tudo a tudo, ao sabor da concessão da “doidivana” e aos apelos de rufião. Uma mais, outra menos, mas todas na mesma barca, todos no mesmo vento e na mesma direção. Enfim: o sexo por dinheiro. As boates, então, por si só tinham lá o seu status, o seu destaque, a sua fama. Umas mais caras, outras medianas, outra populares. Em meio às boates de maior relevo, estas tinham música ao vivo, animada por conjuntos com “música de sopro”, com bebidas e clientes servidos por garçons em paletó e gravata-borboleta.
Músicas do estilo, dançarinos exibidos, bebida rolando; gente bebendo; outros pagando e a pândega rolando noite a dentro. Uma única mulher, na noite chegava a ter quatro, cinco e até seis congressos na sua cama, consoante o seu “prestígio”, ou sua fama ou sua concessão, num tempo de bacia, toalhinha e sabonete ali do lado. Depois ela mesma pintava a cara, penteava o cabelo e voltava ao salão para recomeçar tudo de novo. Novamente. E assim o quarto, o quinto ou o sexto “expediente”, consoante a féria da noite. Ou, como nos dias de hoje; lavou, enxugou tá nova!
Os finais de semana, evidentemente, eram mais movimentados, mas a BOATE por si só no seu quotidiano já era um movimento com aquelas mulheres penteadas, maquiadas, saias rodadas, coloridas e dispostas ao que desse e ao que viesse. E no fundo e no raso um mundo-cão, celeiro de todas as venéreas e outras tantas diabribes que aquele malsinado universo era capaz de ensejar.
Nesse mundo-cão, vicejaram as MADAMES que eram as donas do negócio. Narra a crônica do meio que as madames escravizavam suas inquilinas. As mulheres eram levadas a beber exaustivamente para gerar receita; outras que ingeriam supostas e falsificadas bebidas; muitas delas bebidas de faz de conta, sempre na exploração do freguês, o rufião. E nessa escravidão um verdadeiro estelionato e extorsão. As inquilinas tinham comida e o quarto E claro, os encargos do pagamento, da pensão. Aliás que a BOATE também foi chamada de “PENSÃO”. Nessa diária, de quarto, comida e bebida, gerava-se uma bola de neve com a inquilina impossibilitada do cumprimento, outras que ficavam reféns, submissas em “cárcere privado”. E a MADAME tocava o negócio a ferro e fogo.
Outra figura desse mundo-cão era o GIGOLÔ. “O coração conhece a razão que a própria razão desconhece” e então determinadas mulheres tinham lá o seu “queridinho”, que era geralmente um cara “liso”; que não tinha nem trabalho nem dinheiro e que vivia à beira da sua parceira, à base do sexo gratuito. Lá pela uma, duas da manhã, depois que a ”coroa” já tinha tido seus congressos, o GIGOLÔ entrava em cena e ia curtir a sua vez. Muitos deles exploravam sua parceira, faziam cenas explícitas de ciúme, outros que espancavam-na e... apossavam-se do seu dinheiro. E, nessa onda GIGOLÔS e MADAMES viviam às turras.
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O tempo – divisor de águas como sempre – passou. E as BOATES que vieram de Cabral até aqui, ainda que com a mesma palavra mas sem o sentido de “boite” ou “pensão”, ganharam outra designação, outra dimensão, um novo conceito. Boate agora é coisa do social - de patricinhas, universitários, de garotões e outros empinados por aí. Até de rackeres que espalham dinheiro, exibem poder e carrões e derramam uísque em cima da dinheirama que vem da tecnologia eletrônica. Eu sei, tu sabes, nós sabemos... eles sabem.
O Brasil de Cabral tem seus quinhentos e tantos anos e, a bem da verdade, nunca se fez das BOATES nem um foco ou uma central de bombeiros, de vigilância sanitária, nem de Prefeituras, nem do Estado, nem de uma tal Defesa Civil e outros engendros do consumismo. E disso nunca fizeram nem um cavalo de batalha ou de controle da ordem pública com regras, cobranças, adequações, monitoramento - essas coisas.
Agora após um sinistro sem precedentes com centenas de vidas ceifadas em que a mortandade humana lembra a mortandade de peixes em desastre ecológico, numa BOATE do sul do país, um caso que sacudiu e ainda sacode o Brasil e além fronteiras, de repente as “autoridades” e o “poder constituído” descobriram que BOATES existem. Ora, Boate é coisa que vem dos tempos das Capitanias Hereditárias. Vem de Cabral até aqui. Como na descoberta há quinhentos e tantos anos: “Terra à vista”! As boates agora que se cuidem porque, enfim, foram descobertas, encontradas. Claro, depois de quinhentos e tantos anos... por aí...
*Viegas questiona o social.
Edição Nº 14627
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