O meu pai (em memória) é o meu ídolo e herói. Dele sou fruto e a ele devo uma banda desse meu estar por aqui. O meu pai “estudou”, quer dizer: leu, tão somente até a “cartilha”, um livreto de oito ou dez folhas, do tempo do bê-a-bá - mas ainda assim era um verbo solto, uma polêmica eloquente, um advogado nato. Bom de prosa e chegado num rabo de saia. E por último um poeta de cordel. Na origem, porém, era um roceiro que ficou órfão de pai aos cinco anos, cuja mãe, jovem-viúva e roceira, “moradeira” em terra alheia, tinha quatro filhos e mais uma que veio depois. E olhe a canga! Venho dessa origem e me ufano dessa trajetória pois que “cada qual para o que nasce, cada qual para o que nasceu”.
Naquele meu chão, um lugarzinho feito de roceiros, todos em pés no chão e analfabetos, enquanto todos os pais (todos), punham os filhos no penoso trabalho de sol a sol, na roça, tão logo que “me entendi como gente” (num dizer do meu velho), vi o meu pai preocupado com a escolaridade dos filhos. Não podia, mas tinha vontade, até porque a “Vila”, da escola pública fica/va a uma distância de 25 km, numa estradinha igualmente penosa no inverso e sofrível no verão, em puro lombo de cavalo de cangalha – um dia inteiro em ida e volta. Um dia  de fome e muita fadiga. Era assim. Um dia, porém, pelos vieses estreitos e sinuosos da vida – quando “Deus escrevia certo por linhas tortas” na minha vida acabei indo morar na casa de uma família abastada na “Vila”. E, nessa “casa alheia”, pelas contas que prestei, acabou-se por abrir caminho para vários outros irmãos meus, na escolaridade e na vida.

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Quando concluí o curso primário, o meu pai fez o que nenhum ou poucos pais fizeram: levou-me direcionado para tentar o exame de admissão na Escola Técnica Federal, em São Luís, que ele dizia “Escola Técna”. Dei sorte e entre 510 candidatos para 60 vagas, eu estava matriculado! Certo dia, porém, quando menos espero, meu pai matriculou-me na Escola de Datilografia São José de Ribamar, do Professor Carlos Galvão, na Rua Agostinho Torres, bem perto dos socavões da Rua da Malária, onde eu morava. A ideia do meu pai, desse curso de datilografia, veio de uma máquina-de-escrever que ele viu admirado na Agência dos Correios, cujo chefe o esnobou, e “fez pouco caso” à sua admiração pelo equipamento.
O curso de datilografia ao que sempre avaliei, afora a dedicação, seriedade e empenho do PROFESSOR CARLOS, era de uma precariedade lamentável! Tinha quatro máquinas de escrever. Três delas em estado precário e uma quarta envelhecida que era o amuleto do mestre, seu objeto de estima. E só era cedida aos alunos em casos raros ou em época de “exame de habilitação”. O curso tinha programação para seis meses mas, com três meses, eu já estava dando conta do recado. Em seguida participei dos exames e... fui aprovado – permitam-me - em primeiro lugar! Uma diplomação com direito a convidados, madrinha, discursos, retratos, bolinhos e guaraná, numa tarde memorável. Recebi o diploma, nele pregou-se o meu retrato e o meu pai guardou-o acostado na parede por muitos anos.
Com a diplomação, tornei-me “viciado” em máquina de escrever. Como não tinha uma máquina nem qualquer acesso, o que eu fazia? Nas noites acordadas, deitado à rede, na sofreguidão e ansiedade pela datilografia, eu tinha um teclado imaginário na mente – a s d f – ç l k j -  q w e r – p o i u. E assim na pura mente eu ia treinando, escrevendo, fazendo cartas. Que fazer carta é um velho ofício meu. “Errava”, “corrigia”, usava o “teclado do tabulador”, a “tecla de retrocesso”, a maçaneta do espaçador horizontal, a linhagem vertical; tirava papel, punha papel – Era como eu fazia  exercícios de dactilografia - tudo na pura mente, no imaginário. Depois, achei que era pouco, simulei um teclado numa tábua de madeira e lá vou eu “treinando datilografia”. E o mundo dando voltas...
E não me aguentava em ouvir a sinfonia em tic-tac de uma máquina de escrever, aquele toque cadenciado, bonito e gostoso aos meus ouvidos. E então, na pura “cara de pau”, por onde eu chegava e sempre que viável, passei a pedir que me cedessem a máquina. E usava a imagem da minha mãe, dizia que queria fazer-lhe uma carta. As pessoas ficavam sensibilizadas como o nome de “mãe”. E lá vou eu...  E notava que os cedentes ficavam atentos ao tic-tac articulado que imprimia no exercício da máquina de escrever. Fazia cartas de verdade e, “dando uma chave”, pedia que o/a cedente lesse a minha carta. Notava que as pessoas gostavam do meu desempenho e do texto. No dia seguinte eu estava lá ou... noutra freguesia. E assim fui tocando o exercício em datilografia.

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Quando concluí a 4ª série ginasial, numa manhã de férias, na roça, o meu pai cravou o machado ao toco e decretou: “ou tu arranjas um emprego na cidade ou (mostrando-me o esticadão de suas terras), o mato está aí para fazer roça”. Senti que faltou-me terra ao chão e tive a sensação de que estava num barco perdido no meio do oceano. E agora? Ao final das férias, voltei para a capital. Numa tarde de fim de ano, céu nevoento, brisa leve, minha Escola Técnica de tantas multidões, agora estava de recesso, quase um cemitério. Fui bater por lá. Quase não tinha um viva alma. O PROFESSOR RONALD CARVALHO, então vice-diretor e linha de frente em tudo, estava ali. Recostei-me a porta da sala e, emudecido, fiquei a vê-lo em serviço. A certa altura, porém, do meu desespero, abri o verbo: “professor, me arranje um emprego”. “Amanhã vai ter uma seleção em datilografia, você (eu) pode concorrer”, ele respondeu. “Ah eu tenho diploma em datilografia”... leve sorriso e me disse que datilografia não é diploma, mas a prática. Fiz o teste e ganhei o PRIMEIRO EMPREGO.
Dali em diante a máquina de datilografia me abria portas sobre portas em vários outros concursos, em bancos e num segundo emprego público a que fui admitido por concurso público. E daí o passaporte para a Faculdade que me trouxe e me traz até aqui. A máquina de escrever foi, enfim, uma ferramenta e praia das minhas vitórias, máquinas essas, similares, dez vezes melhores que as do PROFESSOR CARLOS que as vi, por aqui, vendidas ao ferro-velho, ao preço de 15 centavos o quilo. Uma dor! Hoje tenho meia dúzia de máquinas enferrujadas, empoeiradas, abandonadas. Não tenho jamais coragem nem ideia de me desfazer delas. Afinal foi a máquina de escrever que me abriu portas; que ajudou a realizar o velho ideal do PRIMEIRO EMPREGO e que até hoje é um vetor na continuação do teclado do computador e do meu diário exercício profissional. E, em tudo isso, os sonhos, a visão e a obstinação do meu pranteado, visionário e velho pai.

* Viegas é advogado; é CIDADÃO DE IMPERATRIZ. E questiona o social. E-maill: viegas.adv@ig.com.br