Todas as madrugadas, quando começo a minha rotina do dia, faço-o no "escritório" que adaptei ao terraço da minha casa, de cara para a rua. Ali ao lado, tenho antigos pés de açaizeiros que os plantei. Gosto de árvores e de sombras. E planto árvores e planto sombras nos lugares por onde vou. Sempre. Minhas moitas de açaí têm nomes que homenageiam as memórias dos meus ancestrais. Essas coisas de um cara que sou eu...
Desse meu "escritório" de cara para a rua, na madrugada-indolente e quieta, por vezes agressiva e inclemente, volta e meia deparo-me com situações estas e aquelas vindas de transeuntes: ouço lamúrias, choro; gritos; gente que sorri e fala só. Notívagos que caminham sem direção. Ouço o cantar de pneus; som de carro como numa terra sem lei. Por vezes acidentes até (ainda na madrugada) naquela minha esquina de tantos acidentes - que o órgão de trânsito esqueceu-se de lembrar.
Ainda é quatro da madrugada quando o meu galo-cantador começa a cantar. E a energia desse canto que vem de lá para cá e encontra-se com a energia que vai daqui para lá. Lá pelas cinco, com o meu galo já cantando novamente, começa a orquestra dos pardais, muitos que pousam sobre o fio elétrico e outros tantos que se gasalharam nas folhas das minhas juçareiras. E eu, anfitrião do acaso, vou me sentindo privilegiado com esses cânticos do amanhecer.
Os pardais já viraram tradição. E compõem um ritual natural. Estão nessa rotina faz anos, muitos anos - desde que plantei o verde e as sombras. Eles soltam seus silvos-breves seguidos e multiplicados, compondo uma orquestra que faz a rotina e a canção do meu amanhecer nesse meu "escritório" ao terraço da minha casa. E eu diletantista, escrevinhador do social, inebriado por esse musical da natureza e por vezes pela brisa que vem do vento norte, farfalhando as folhas das minhas juçareiras, pego carona na alegria do viver para  em seguida dividir com a minha cara-metade que me espera na cama para esse novo amanhecer, num entrelaço de estremecer.

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O personagem, porém, que me motiva a esta, vem agora. É um cara que, em meio a essa "selva" e orquestra da cidade, canta sozinho. Ele tem um canto monótono e lembra o "curió-tisiu", nas roças e capoeiras da minha infância. O curió-tisiu canta(va) sobre um toco à meia-altura, em espaço-livre. Então, ele faz um pequeno voo em vertical ascendente e volta ao mesmo ponto e solta o seu canto. E fica por um longo tempo fazendo a mesma coisa, no mesmo lugar. É assim o curió-tisiu que solfeja um canto de poucas notas - monótono em suas múltiplas repetições.
Esse pássaro - acho que solitário - que faz o canto da madrugada, à beira do meu terreiro, tem a capacidade de me mandar para os idos da minha infância e lembrar as cenas e os sons do curió-tisiu da minha criancice. É aí onde volto no tempo, revejo minhas pegadas, a vida de um tempo, as pessoas de um tempo e os rastros que deixei nos... CAMINHOS POR ONDE ANDEI.
- Agora é pouco mais de cinco da manhã. Os pardais, eles mesmos que por vezes dividem a ração com o meu galo, debaixo daquele quintal temático e encantado, também de sombras, sossego e areia branca, governado pelo meu galo-cantador. Agora, aos poucos os pardais diminuem a sua orquestra. Até parece que a "festa" está acabando. O galo tem outro compromisso, retoma o seu canto e trina e solfeja em seu dobrados, recepcionista do amanhecer; o cantor das alvoradas.
- Faz algum tempo, bem pouco tempo e aquele solitário, cover do curió-tisiu também já não canta mais e então eu fico a imaginar que ele já cumpriu a sua função, a sua sina e, mesmo que isolado, solitário nessa orquestra do amanhecer, aqui - na minha esquina, à beira das minhas juçareiras. A este ponto a minha outra banda da laranja está em viagem e então, esta madrugada, quebrando o paradigma de tantas outras em meio e após tanta orquestra dos pássaros, não tem o entrelace que faz no físico e no espiritual, a vida a dois. A gente a dois.
Eu que tantas vezes nessa minha rotina de madrugador atávico e contumaz fui e vou até às sete, às oito da matina - eis que agora, cinco e meia batida, é hora de suspender. Tenho que cuidar da minha viagem; vigésima viagem; vou trabalhar o MEMORIAL DE ANTÔNIO DE INEZ, para perpetuar a memória do meu velho pai, ele mesmo cúmplice proposital por eu estar aqui cantando essas loas. Poderia eu estar no cabo do machado, no eito do roçado mas... "cada qual para o que nasce..." diz o fado.
Agora, quando desligo a CPU; quando só uns desgarrados pardais cantam lá fora; quando já não ouço o meu galo cantador, mesmo sabendo que logo-logo ele voltará a cantar; quando o sol já começa a clarear quando no horizonte posso ver que o sol vem para esquentar, eu fico revendo na mente aquele cover do curió-tisiu que já desapareceu. Mas é como disse acima: "É aí onde volto no tempo, revejo minhas pegadas, a vida de um tempo, as pessoas de um tempo e os rastros que deixei nos... CAMINHOS POR ONDE ANDEI.

* Viegas é filho e cria de suas origens.
E questiona o social.