A LENDA DO OLHO DE BOTO
Havia, naquele chão brejeiro e aos quatro ventos por aquelas bandas, uma forte e intensa lenda do olho de boto. Diziam que o homem que possuísse um olho de boto guardado ao bolso e que o levasse por onde fosse,  teria fácil acesso às mulheres – fosse para dançar, para namorar, para transar. O olho de boto, enfim, era um amuleto a serviço da atração, da  conquista, do sexo.

As pessoas ficavam transtornadas, exasperadas com a acentuada versão do olho de boto; contudo, não imaginavam como sequer alcançá-lo de tão distante e inacessível que era o cobiçado amuleto - longe, muito longe do alcance de todos por ali. JOTAZÊ era um moreno, solteiro, boa aparência, filho único de um casal de posses acima da média para os padrões do lugarejo e cercanias: bom de prosa, palavra fácil, disponível em tempo inteiro e, demais disso, detentor do curso primário, numa época e numa região em que a grande maioria era analfabeta ou quando muito desenhava o nome.

Fora isso, bom de escrita, bom de leitura, bom de tabuada com prova dos nove e tudo o mais. Quer mais? O cara era um galanteador inveterado e incorrigível, ainda mais com a versão de que por onde andava passava o rodo e deixava a sua marca. JOTAZÊ chegava às festas, dançava com as “melhores moças”, fichava-se ora numa ora noutra. Enquanto  seus parceiros capengavam para conseguir uma paquera, JOTAZÊ tinha de sobra. Diziam então a um verbo só que o rapaz tinha UM OLHO DE BOTO com o qual enfeitiçava as mulheres. E todos enfim sabiam, quer dizer: todos diziam isso.

JOTAZÊ não era um rico, mas era bem aquinhoado. Seu pai, dono de terras bem localizadas, ali juntinho da própria de casa; também prestigiado mandante de bumba boi, enquanto sua mãe dona MASÔ, era uma espécie de cartomante e vidente. Punha cartas e dava as cartas. Sabia das coisas! Palpites que atravessou gerações! Ganhava um extra, é claro! E o queridinho. Solteiro e filho único, gozava das mordomias e das bandejas patrocinadas por pai e mãe. E então o rapaz fazia suas traquinices nos barracões de festas por onde ia, sempre cortejando e rodeado de tantas mulheres. E a galera despeitada, tecendo a língua: “Só mesmo tendo um olho de boto”... E o rapaz nem aí para o ditério da falação.

Numa de suas investidas, foi a uma festa no lugar “PULEIRO”, onde viu uma formosa morena, bem apessoada, bem vestida, traquejada, moça com ares de quem tinha convívio  com a capital. E JOTAZÊ, ali, na festa, no baile, só “expectando” como se dizia na época, quer dizer: só assistindo. E vendo aquela morena inteira, bonita e formosa, dançando de passagem com sua saia rodada, logo sentiu-se fisgado pelo inebriante “cheiro da maçã” - como um dia me disse. E viu-se de uma hora para outra, terrivelmente enfeitiçado! Ele  que por aonde ia sempre  dava as cartas no terreiro, agora ele quem se sentia ferido pela flecha de CUPIDO. Ele sim, agora  dominado!...

Aí, jogou suas asas para cima daquela linda morenaça, saia rodada e cheiro da maçã. E não de outra! Foi peixe na rede! Pouco depois seu pai, o importante e prestigiado mandante de bumba-boi, vendo que o filho era um terrível e inveterado carnívoro, tratou de fazer o casamento com aquela jovem que se lhe pareceu ideal para esposa e que em seus dotes pessoais, sabia costurar e bordar! E, portanto, não seria uma roceira de sol a sol. Enfim, uma “moça prendada”. O rapaz não queria isso. Criou engendres de resistência, queria mais vadiagem, mais frivolidade, mais “catrevagem”. Venceu, porém a vontade do pai. E os dois casaram-se de “papel passado” e criaram filhos e netos. Mas, ainda assim, não se pense que foi pelos ares, a lenda do olho de boto.

Tantos anos se passaram, a volúpia e a sua aflorada libido transformaram o rapaz conquistador, digamos, num bom sujeito, num discreto pai de família. Herdeiro das terras de pai e mãe, está lá, em cima de tudo. E senhor daquelas terras privilegiadíssimas em dezenas de hectares, que pode lotear, se quiser, a preço de metro quadrado. E a lenda do olho de boto em torno do avô de seus netos, morreu? Acabou?  Tais pensando o quê? O mais que setentão, agora tem uma gatona, inteira, por conta, ali – na beira, pertinho de casa. E, como ninguém é de ferro, ainda  no final da tarde, fecha o seu comércio e, na discrição vai saindo,  vai saindo e ataca sem dó nem piedade aquela morena que tem por conta,  na beira de casa!

No dia seguinte, no lusco-fusco da manhã, o ENCANTADOR deixa aquela segunda via e, discretamente volta para casa, tudo ali perto, para companhia daquela... aquela da  saia rodada, aquela do cheiro da maçã, aquela  que virou a mesa e o feitiço virou contra o feiticeiro, hoje mãe dos  filhos e  avó dos netos de JOTAZÊ. E o povão só olhando tudo ali: – amante e esposa, cada qual na sua casa, mas tudo ali “porta com porta” e os faladores só achando que JOTAZÉ  “só mesmo tendo um olho de boto”...
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Raul seixas, na canção “Eu nasci há de mil anos atrás”, onde canta e conta uma saborosa ficção com sabor de história universal, diz ao final: “... quem souber que me conte outra”. Pois é! Fonte idônea, faz tempo, me contou que na vizinha e ribeirinha Itaguatins/TO, um garoto da cidade, tinha uma intrigante amizade com um boto fêmea, a qual costumava aproximar-se da beira do rio (do cais), oportunidade em que o jovem fazia-lhe carícias pelo seu corpo. Contou-se até que por vezes o jovem fazia pequenos passeios aquáticos sobre o dorso do mamífero, deixando moradores intrigados com aquela “amizade colorada”.

E assim tantas vezes o animal vinha à procura do amigo que nem sempre estava ali para recebê-la, ao que, depois de algumas evoluções, desaparecia nas águas do Tocantins. Numa dessa um perverso e mal-feitor, cutucou o animal com uma vara e o boto desapareceu daquelas águas, para nunca mais voltar a rever o seu amigo. Foi como me disseram. Ou como na canção de Raul Seixas: “Quem souber que me conte outra...”.